Filosofia com o Ensino Fundamental
Formação de professores
Prof. Amilcar Campos Bernardi
Fevereiro de 2023
Introdução:
É notória a dificuldade de interpretação de texto e de mundo que nossa população enfrenta. A realidade comunicacional é cada vez mais rápida, resumida e resumível, afeita a slogans e frases de efeito.
Nas leituras, nas falas e nas escritas, é de praxe evitar o complexo e optar pelo simples/simplório, imediato/imediatismo.
Contrário sensu, cada vez mais a reflexão é convidada a ler a realidade feita de problemas nada simples. O mundo dos saberes é feito de complexidades e desafios crescentes.
É preciso um “re-repensar”, uma “re-revisão” de tudo que é pensado e visto.
Com o chamado Novo Ensino Médio, novas habilidades e competências são necessárias aos alunos. Esta nova perspectiva impacta o Ensino Básico e, por consequência, o Ensino Fundamental. Reforça-se a perspectiva de um ensino interdisciplinar/transdisciplinar.
Mais importante ainda é a necessidade crescente e imperiosa de desenvolver nos jovens a tolerância mediada pela capacidade de bem argumentar.
Não é aceitável sob o ponto de vista civilizatório, argumentar como quem usa um tacape.
Urge a sutileza dos raciocínios elaborados. Sutileza que convence pela sua clareza e lógica interna. Argumentos não só coerentes, mas que se baseiam na história, na ciência e na ética.
Entretanto, só é tolerante e só argumenta quem tem leitura de texto/contexto. O texto é o livro, é a realidade, é a relação humana, é a política (lato senso), é o mundo.
Na realidade este projeto quer desenvolver leitores e “interpretadores” de mundo(s).
Na perspectiva de uma utopia, o projeto quer desenvolver pessoas que escrevam no mundo, com o mundo e que criem novos textos e novos mundos para novas interpretações.
O que é o Projeto Filosofia com o Ensino Fundamental
Vamos começar com as negações.
Não será trabalhada a história da Filosofia, nem será apresentado um conjunto de conceitos já delimitados pelo fazer filosófico através dos séculos. Este projeto não pretende ensinar a cultura filosófica aos alunos.
A chamada educação bancária, conceituada pelo professor Paulo Freire, é algo a ser evitada ao máximo. No lugar dela, melhor é a troca de saberes entre sujeitos iguais na capacidade de pensar, de refletir. Professor e aluno são iguais neste sentido. O que os difere é o tempo de vida aplicados ao exercício da competência do bem pensar e de bem refletir.
Agora já podemos positivar do que trata este projeto.
O que queremos apresentar aos alunos se sustenta em quatro pilares críticos que, pelo hábito (no sentido aristotélico[1]), precisam ser internalizados. São eles:
a) O que queres dizer com o que tu dizes? – Filosofia da linguagem
Todas as pessoas ao dizerem o que querem dizer, falam mais de si do que imaginam. Usam um vocabulário personalizado, representativo da sua cultura, das suas vivências imediatas. A representação de mundo implícita em suas falas, demonstram suas hipóteses explicativas para a realidade que as cercam.
Quando o professor pergunta sobre o que a pessoa desejou dizer com o que disse, o(a) aluno(a) vai redizer. Então, expõe ao professor a sua compreensão de mundo que produziu aquela fala. Portanto, a pergunta não quer saber a resposta certa, mas quer saber do mundo de quem pergunta.
Os conteúdos acadêmicos poderão partir do mundo do aluno que se expressou (“se expressou” também no sentido de expressar a si mesmo).
A pergunta “O que queres dizer com o que tu dizes?” não quer corrigir nada. Quer trazer à luz as hipóteses explicativas de mundo do aprendiz.
Vamos arriscar um exemplo.
O(a) aluno(a) diz ao professor que a pobreza sempre existiu. O(a) professor(a) pergunta o que a pessoa quis dizer com essa informação. Ela responde que acha isso porque sempre ouviu isso.
O que o(a) aluno(a) está dizendo mesmo? Que a única hipótese que seu contexto pôde criar é esta: sempre foi dito assim, logo, desde sempre foi assim. Ora, sob o ponto de vista da ciência e da história, é possível a vida de doze anos do(a) aluno(a), que por doze anos ouve a expressão “sempre”, representar os milhares de anos de existência da vida humana? O “sempre” de doze anos não pode dizer dos milhares de anos da humanidade. Há que se trabalhar com esta falsa percepção de tempo.
Esta percepção egocentrada de tempo poderá ser trabalhada pela disciplina de Ciências, de História e de Geografia. Percebamos que estas disciplinas trabalharão com seus conteúdos tradicionais, acrescentado a reflexão sobre a hipótese de tempo equivocada.
Sob esta perspectiva estabelecer-se-á uma percepção filosófica de tempo, alicerçada nas ciências.
b) Foco na pergunta. Quem sabe mais, pergunta mais. Quem sabe menos, pergunta menos. - Filosofia da ciência/ontologia
- Quem pergunta sabe algo.
- É baseada nesse algo que a pessoa pergunta.
- Quem pergunta tem a esperança de que a pessoa perguntada tenha alguma resposta.
Quando o(a) aluno(a) pergunta algo, expõe um (pre)saber, uma hipótese, uma explicação que já possui sobre o mundo. Portanto, ouvir uma pergunta é muito mais que ouvir o que o perguntador quer saber. Quem questiona fala da sua vida e das suas crenças (que no momento da pergunta ficam suspensas a espera de confirmação). Por esta ótica, quanto mais a sala de aula for permeada por perguntas, tanto mais o professor saberá dos contextos implícitos da vida de quem pergunta. Há que se planejar aulas pensando nestes (pre)conceitos dos(as) alunos(as). Isto para fazê-los refletir sobre o que já tem em mente, para que então possam transformarem e transformarem-se.
Quem pergunta confia no professor. Não só porque imagina que a pessoa mais experiente e estudada saiba, mas, principalmente, porque percebe o ambiente como seguro e respeitoso. Quem pergunta se abre para receber a resposta, está vulnerável. Merece cuidados e respeito. A sala de aula deve ser o ambiente mais apropriado para as perguntas do que para as respostas.
O professor para ouvir a pergunta se abre também, pois tem que “liberar” espaço em si para ouvir. Tem que estar atento. Tem que não (pre)julgar. Tem que buscar os contextos da pergunta muito mais que a pergunta em si. Está em busca das hipóteses falseadoras da visão científica ou da visão ética civilizatória. Portanto, o professor há de modular a sua resposta (científica e ética) de modo a ajudar na transformação da hipótese equivocada.
Quem sabe mais, pergunta mais. Um filho de mecânico sabe muito experimentalmente, pois convive com motores, combustíveis e combustões. Há que fazer mais perguntas ao professor de ciências, pois tem mais hipóteses para testar. Comparado a esta criança, as outras que sabem menos destas experiências, perguntarão menos (possuem menos hipóteses). Portanto, a pergunta é mais importante que a resposta. Revela o que os alunos já sabem e os qualificam para mais perguntas.
Saliente-se a perspectiva filosófica: sábio é o curioso. Uma biblioteca ou o Google não são sábios. A curiosidade é. A resposta não é totalmente, pois é temporária. As aulas existem para criar curiosos.
c) Interdisciplinaridade/transdisciplinaridade - contextos
Nenhuma pessoa é linear. Todos somos complexos. Vivemos em multiversos. Somos possibilidades, pois sequer nossa história nos determina. Nem a humanidade como um todo é determinada por sua história. A história ensina, aconselha e dá exemplos; só isso. A ciência não foge disso. O que hoje é na ciência, amanhã é mais um pouco. E, não raro, o que era já não é mais. Portanto, ensinar para o que é, dura pouco. Ensinar para transformar, ler e reler o mundo é muito mais produtivo. Não ensinamos para o ponto final de uma frase. Ensinamos para os gerúndios (ação ainda em desenvolvimento) e para as reticências (o ainda não revelado, as insinuações).
Quando o(a) aluno(a) responde ou pergunta, como já foi dito, ele se expõe. Confiante, fala inconscientemente da sua vida, do seu vocabulário, das suas ideologias e das suas hipóteses. Então, mais de uma disciplina pode, e deve, ser chamada para dar conta desta complexidade.
Vamos a outro exemplo.
A Mariazinha informa à professora de Português que mora em um apartamento no bairro. Que tem uma gatinha chamada Bela. Então ela acrescenta que a Belinha “sobe para cima” muito rápido. Mais rápido que todos. A professora, que leu este projeto, não apontou imediatamente a redundância. Ela lembrou de uma poesia que fala de ideias repetidas. Era uma boa opção para trabalhar esse tema. Não magoaria a criança nem deixaria passar o equívoco. O professor de ciências ouviu o relato e afirmou que as ciências eram redundantes. Ora, só sabemos que a pedra cai para baixo por que testamos inúmeras vezes e os resultados foram redundantes! E as fórmulas na cinemática? Só existem por que os movimentos se repetem: sempre “andam andando” daquele jeito (velocidade constante nas mesmas condições), sempre “param parando” naquela velocidade (portanto, a desaceleração é constante naquela situação). A ciência não seria redundante? Na ciência só é verdade o que se repete? O professor de história lembrou das teorias cíclicas da História. Será que tudo se repete? Por isso que há épocas de abundância seguidas de pobreza? Ao final da conversa, estas áreas alinharam seus conteúdos para esse tema: a repetição.
d) A gentileza - empatia
A pessoa gentil é aquela que é amável, que desenvolveu o hábito da amabilidade e da delicadeza. Quando pensarmos sobre a amabilidade, é interessante refletir sobre a amorosidade de Paulo Freire. Quanto a delicadeza, convém lembrar da preocupação em não causar dano ao que é frágil. Ser gentil, por consequência, é se preocupar com o outro. Só é gentil aquele que age de forma adequada ao outro. Portanto, a gentileza à qual me refiro, não é formal. Ou seja, aquela que é igual para todos, como o “Bom dia” que damos de igual forma para qualquer um.
Quando falo da gentileza, refiro-me a uma gentiliza pedagógica. Esta gentileza é oposta ao “Bom dia” formal. A gentileza pedagógica ocorre em contraponto as fragilidades de quem dela necessita. O professor é gentil quando está atento, amoroso e é delicado em face de quem tanto dele precisa. O professor só é verdadeiramente gentil quando conhece a necessidade de gentileza de quem dela precisa.
A proposta Filosofia com o Ensino Fundamental quer ser uma proposta baseada na gentileza pedagógica.
Princípio dialógico, cooperativo e socializante.
Nada nasce do nada. Sempre há uma estrutura histórica que suporta o novo. Podemos aceitar que não há na história uma linearidade que preveja o futuro. Entretanto, não há futuro possível sem história.
Este projeto tem em sua estrutura o que foi chamado pela história da filosofia de diálogo socrático. Podemos entender este diálogo como uma técnica usado por Sócrates nas praças atenienses. Sócrates fazia perguntas às pessoas que andavam pelas ruas da cidade. Ou ainda, quem quisesse falar com ele. O que parecia ser tão simples, culminou com sua morte. Saber perguntar é um ato de coragem.
O projeto pretende estimular esta coragem.
A pergunta tem mais sabor quando em grupo. Quando feita num ambiente de cooperação. O diálogo não é uma disputa, mas uma troca. É socializante, pois o que um sabe, o outro saberá.
A pergunta demonstra mais o que a pessoa sabe, menos o que ela não sabe. A pergunta de um físico pode perturbar outra físico. Já a de um iniciante, em princípio não. Quem sabe muito, muito pergunta. Neste sentido, o saber filosófico discutido em sala de aula, qualificará a pergunta. Quanto mais o aprendiz souber, mais qualificado está para a pergunta.
É preciso saber perguntar.
Perguntar é interpretar o texto, procurar o contexto.
O projeto pretende que haja produção textual dos participantes (uma avaliação “avaliativa”). Produção avaliada pelo grupo docente e socializada entre eles.
O que o professor perguntará ao texto produzido pelos participantes?
O que é? Por que é? Quais as justificativas?
A “avaliação avaliativa”
Sabe-se que a avaliação é diagnóstica. Não é mais possível avaliar para catalogar, hierarquizar, preferir/preterir e reter/avançar alunos.
Propomos uma “avaliação avaliativa”. No mínimo duas.
Não terá registro de “notas”. Não haverá devolutiva direta aos alunos. Os alunos se submetem, mas é a metodologia do professor que é avaliada. É para ser discutido pela equipe diretiva. É uma avaliação interna para efeitos externos, ou seja, avalia-se internamente para melhorar a aprendizagem/ensinagem na sala de aula.
A avaliação será composta de questões dissertativas que visam perceber o entendimento contextualizado das questões trabalhadas em sala de aula. Será uma avaliação com no mínimo duas disciplinas. A aferição/discussão dos resultados será feita pelos professores envolvidos mais um.
Como os professores e equipes diretivas desenvolverão a perspectiva do Filosofar os saberes?
A mantenedora providenciará, dentro dos encontros para formação, momentos para a formação específica nesta perspectiva, a Filosofia com o Ensino Fundamental.
Para aclarar os conceitos serão disponibilizados virtualmente vídeos sobre o tema. Pequenos vídeos de quinze minutos.
Metodologia socrática
O projeto tem como inspiração as características do método do filósofo Sócrates. Como se sabe, ele frequentava as praças e interrogava qualquer pessoa que tivesse a coragem de estabelecer diálogo com ele.
Sócrates, no primeiro momento, se utilizava da Ironia. Evidentemente que não no sentido do debochar, mas sim de, pedagogicamente, simular um desconhecimento para incentivar a fala do companheiro de diálogo. Ao fingir que nada sabia, habilitava-se a perguntar de maneira mais livre e instigava o discípulo instigado a responder.
A resposta socrática era outra hipótese que superava a anterior. Era a maiêutica ou o parto de novas aprendizagens. Ele entendia que as ideias já estavam nas pessoas e que o diálogo franco poderia trazê-las (as ideias) à luz.
Este projeto quer ser socrático.
Objetivos
O projeto objetiva ampliar a criticidade justificada, ética e responsável, embasada na lógica interna dos argumentos e interpretação racional/ética da realidade.
Busca-se a interdisciplinaridade e transdisciplinaridade na complexidade dos saberes, e o fortalecimento das habilidades e competências na interpretação dos conteúdos.
Pretende-se trabalhar não só a linguagem argumentativa oral, mas também a linguagem escrita.
Este projeto quer:
- Apontar para a importância do conhecimento histórico (não mítico) e científico sobre o mundo;
- Salientar a radical necessidade de praticar a interpretação de texto e de mundo;
- Habituar a reflexão ética;
- Exercitar o uso da razão e o respeito pela racionalidade do outro;
- Apontar para a relação sempre dialogal entre mim e o outro, entre mim e o mundo e a relação entre nós e a polis.
Conclusão
Quer o projeto ajudar os participantes na transformação escolar que logo sofrerão, ou seja, sairão do Ensino Fundamental para o (novo) Ensino Médio. Um desafio especial que exigirá novas competências para novas exigências na capacidade de compreensão das novas disciplinas e processos avaliativos.
Pretende-se que os participantes de forma cooperada desenvolvam amplamente a leitura contextualizada de textos do mundo e no mundo (escritos, orais ou pictóricos). É preciso saber ler o mundo, ou seja, compreendê-lo, interrogá-lo e cooperar na sua transformação.
[1] Para Aristóteles, o hábito é aquelas ações que, após serem exaustivamente e conscientemente exercitadas, se tornam uma disposição de caráter da mesma qualidade.
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