“E foi
nesse instante que a vontade de não ser séria chegou. Este é o primeiro sinal
do animus brincandi, em
matéria de pensar – como – hobby.”
Estava
lendo algumas crônicas da Clarisse Lispector. E uma em especial me
chamou a atenção. Chama-se Brincar de pensar, escrita na década de
sessenta. Nem preciso me debulhar em
elogios aos escritos desta maravilhosa escritora; todos já sabem das suas
qualidades excepcionais.
Parece
até que estava combinado com o destino. Ele quis que esta crônica viesse até
mim, após eu ter publicado vídeos sobre a necessidade de sempre (re)pensar, no
meu blog.
Nesta
crônica – Brincar de pensar - Clarisse levanta a hipótese do
pensar como um modo de se divertir. Para
isso, ela apresenta uma novidade: a importância de pensar e se perceber
pensando. Talvez estas coisas
(pensar e prazer de pensar) soem como incompatíveis. Esta (in)compatibilidade
depende de como cada um utiliza sua capacidade de pensar. Vamos examinar isso.
Todos exercemos
diariamente o pensar habitual e orgânico: aquele que sequer percebemos
que estamos pensando. Quando vou comprar pão na esquina, eu penso no que vou
fazer, é claro. Entretanto, é tão habitual que tenho pouca consciência destes meus
pensamentos. Claro que, neste nível de
inconsciência, não podemos acreditar que possa ser algo divertido. Pois só é
divertido aquilo que vivenciamos conscientemente. Se não tenho plena consciência
do que é prazeroso, não tenho pleno prazer.
Temos
que ter consciência do nosso pensamento. Saber o que fazer com ele para nos
divertirmos com seu exercício.
Há
pensares especializados que são como ferramentas, servem para resolver
problemas (ou criá-los, dirá um pessimista!). Aqui temos o pensamento racional,
não habitual, instrumentalizado. O filósofo é craque em utilizar o pensar para
resolver enigmas radicais. Não me parece que, naturalmente, este tipo de
pensar facilmente dê prazer para um grande número de pessoas que o exercite
desta forma. Afinal, ele é muito trabalhoso. Portanto, para ser prazeroso
para muitas pessoas, terá que ser um tanto diferente disso.
O
pensar especializado é prazer para sujeitos especializados.
Clarisse
nos conta que há pensares que podem ser feitos com outras pessoas (em
colaboração). Neste caso, já não depende só de nós o prazer de pensar, afinal,
dependemos da amorosidade com que as outras pessoas vão receber nossas
reflexões. Sem falar que, quanto mais
tímidos formos, mais constrangidos seremos neste compartilhamento. No caso de pensarmos
sozinhos, ensimesmados, a coisa é mais fácil. Mas há um efeito colateral desta
solidão pensativa: acabamos pensando (pro)fundo. Então, há algum risco de
ficarmos, segundo a Clarisse, “com o coração pesado”. Não parece ser muito
divertido.
Corações
leves encontram mais fácil o prazer de (re)pensar.
Eu
concluo: o pensar prazeroso, portanto, ocorre de forma diferente do descrito
nos parágrafos anteriores. Ou seja, tem que ser consciente e, se trabalhoso
e profundo, que tenha alto grau de prazer como resultado das elucubrações.
Para ser prazeroso, tem que valer a pena.
Qual forma
de pensar é divertida?
Nos
divertimos quando brincamos. Ou quando jogamos de brincadeira. Quanto mais
despreocupados, tanto mais nos divertimos. Enquanto brincamos, sem querer,
alargamos as regras, confrontamos os limites. O jogo recreativo é divertido
porque é imprevisível (pois é uma aposta) e é uma esperança (pois esperamos ter
sucesso na jogada). O prazer está entre a excitação da imprevisibilidade e o
conforto da esperança. O pensar divertido é esta espécie de jogo.
Evitando
a especialização extrema e a inconsciência de como pensamos, todos nós poderemos
transformar o pensar em uma brincadeira, em uma alegre afronta mental às regras
rígidas da rotina.
O
hábito diário de não desregrar, de não fazer o diferente é econômico. Quero
dizer com econômico que o hábito faz com que gastemos pouco da nossa energia
mental. Para repetir o já pensado e fazer o que já foi feito inúmeras vezes,
basta estarmos espiritualmente ligados no “automático”. Qual o preço da
rotina? Não termos prazer em refletir. Em contrapartida, dirão os
conservadores, não cansamos nossa mente. Para muitos esta contabilidade está
ótima. Não há motivos para mudar o que é habitual e funciona tão bem (e por
tanto tempo!).
E se
valorizássemos a diversão, a diversão do pensar não rotineiro? O típico “sair
da caixinha”!
Podemos
nos esforçar para obtermos esta competência: pensar prazerosamente,
como se fosse um jogo divertido. Não é algo facilitado pela nossa cultura
conservadora, portanto, exige esforço. Podemos treinar nossa mente para
repensar o que ocorre e nos chama a atenção. Buscar alegremente (como num jogo
de adivinhação) o sentido, o porquê, quais as intenções, quais as
consequências. O prêmio é o prazer de tornar mais complexo o que parecia tão
simples. O prêmio é compreender mais o que já compreendíamos medianamente.
Esse
jogo pode ser jogado sozinho, ou com companheiros igualmente treinados na
brincadeira. É, confesso, um jogo muito refinado, mas também muito divertido.
Quebra a rotina. Cansa um pouco, mas à medida que ficamos bons no jogo, nem
cansamos mais. Jogamos com orgulho até. Seremos como os atletas do grupo de
elite. Quanto prazer em ser admirado por nossa excelência!
No
caso, excelência no pensar.
Quando
sozinhos, pensar é um monólogo interno. O jogo é mais simples e mais profundo
por ser íntimo. Jogar com outros é mais complexo, e tende a não se aprofundar.
Claro, há exceções. Há grupos, como em
campeonatos de xadrez, onde todos os participantes são exímios jogadores! Então,
jogar em grupo é um show! Mas, convenhamos, não é a regra.
Pensar
de forma divertida é como praticar esportes. Dói tudo no início, depois é só
diversão.
No
final da crônica a Clarrise afirma que às vezes o pensar brincando, brinca
com a gente: é o brinquedo que brinca conosco, nos domina. E conclui: “Não
é bom”. Pensei sobre isso e concordo
com ela em parte. É verdade que ao pensar, o pensamento pensa a gente.
Ou seja, eu vou conhecendo a mim mesmo à medida que vou refletindo sobre o que
penso. Fico mais consciente de quem eu sou. E isso pode ser doloroso. Brincar
de pensar me deixa menos bobo, menos afeito às rotinas. Brincar com minhas
reflexões, permite que eu entenda mais o que me cerca. Isso me tira da eterna
infância da rotina mental. Talvez não seja muito agradável entender o meu
entorno. Entretanto, o prazer de brincar e o prazer de perceber os avanços
que tal brincar fez comigo, faz tudo valer a pena.
Então,
diferentemente da Clarisse, eu concluo: isso é muito bom.