sábado, 25 de setembro de 2021

Todos devem pensar com “animus brincandi”

 



 

“E foi nesse instante que a vontade de não ser séria chegou. Este é o primeiro sinal do animus brincandi, em matéria de pensar – como – hobby.”

 

Estava lendo algumas crônicas da Clarisse Lispector. E uma em especial me chamou a atenção. Chama-se Brincar de pensar, escrita na década de sessenta.  Nem preciso me debulhar em elogios aos escritos desta maravilhosa escritora; todos já sabem das suas qualidades excepcionais.

 

Parece até que estava combinado com o destino. Ele quis que esta crônica viesse até mim, após eu ter publicado vídeos sobre a necessidade de sempre (re)pensar, no meu blog.

 

Nesta crônica – Brincar de pensar - Clarisse levanta a hipótese do pensar como um modo de se divertir.  Para isso, ela apresenta uma novidade: a importância de pensar e se perceber pensando.  Talvez estas coisas (pensar e prazer de pensar) soem como incompatíveis. Esta (in)compatibilidade depende de como cada um utiliza sua capacidade de pensar. Vamos examinar isso.

 

Todos exercemos diariamente o pensar habitual e orgânico: aquele que sequer percebemos que estamos pensando. Quando vou comprar pão na esquina, eu penso no que vou fazer, é claro. Entretanto, é tão habitual que tenho pouca consciência destes meus pensamentos.  Claro que, neste nível de inconsciência, não podemos acreditar que possa ser algo divertido. Pois só é divertido aquilo que vivenciamos conscientemente. Se não tenho plena consciência do que é prazeroso, não tenho pleno prazer.

 

Temos que ter consciência do nosso pensamento. Saber o que fazer com ele para nos divertirmos com seu exercício.  

 

Há pensares especializados que são como ferramentas, servem para resolver problemas (ou criá-los, dirá um pessimista!). Aqui temos o pensamento racional, não habitual, instrumentalizado. O filósofo é craque em utilizar o pensar para resolver enigmas radicais. Não me parece que, naturalmente, este tipo de pensar facilmente dê prazer para um grande número de pessoas que o exercite desta forma. Afinal, ele é muito trabalhoso. Portanto, para ser prazeroso para muitas pessoas, terá que ser um tanto diferente disso.

 

O pensar especializado é prazer para sujeitos especializados.

 

Clarisse nos conta que há pensares que podem ser feitos com outras pessoas (em colaboração). Neste caso, já não depende só de nós o prazer de pensar, afinal, dependemos da amorosidade com que as outras pessoas vão receber nossas reflexões.  Sem falar que, quanto mais tímidos formos, mais constrangidos seremos neste compartilhamento. No caso de pensarmos sozinhos, ensimesmados, a coisa é mais fácil. Mas há um efeito colateral desta solidão pensativa: acabamos pensando (pro)fundo. Então, há algum risco de ficarmos, segundo a Clarisse, “com o coração pesado”. Não parece ser muito divertido.

 

Corações leves encontram mais fácil o prazer de (re)pensar.

 

Eu concluo: o pensar prazeroso, portanto, ocorre de forma diferente do descrito nos parágrafos anteriores. Ou seja, tem que ser consciente e, se trabalhoso e profundo, que tenha alto grau de prazer como resultado das elucubrações. Para ser prazeroso, tem que valer a pena.

 

Qual forma de pensar é divertida?

 

Nos divertimos quando brincamos. Ou quando jogamos de brincadeira. Quanto mais despreocupados, tanto mais nos divertimos. Enquanto brincamos, sem querer, alargamos as regras, confrontamos os limites. O jogo recreativo é divertido porque é imprevisível (pois é uma aposta) e é uma esperança (pois esperamos ter sucesso na jogada). O prazer está entre a excitação da imprevisibilidade e o conforto da esperança. O pensar divertido é esta espécie de jogo.  

 

Evitando a especialização extrema e a inconsciência de como pensamos, todos nós poderemos transformar o pensar em uma brincadeira, em uma alegre afronta mental às regras rígidas da rotina.

 

O hábito diário de não desregrar, de não fazer o diferente é econômico. Quero dizer com econômico que o hábito faz com que gastemos pouco da nossa energia mental. Para repetir o já pensado e fazer o que já foi feito inúmeras vezes, basta estarmos espiritualmente ligados no “automático”. Qual o preço da rotina? Não termos prazer em refletir. Em contrapartida, dirão os conservadores, não cansamos nossa mente. Para muitos esta contabilidade está ótima. Não há motivos para mudar o que é habitual e funciona tão bem (e por tanto tempo!).

 

E se valorizássemos a diversão, a diversão do pensar não rotineiro? O típico “sair da caixinha”!

 

Podemos nos esforçar para obtermos esta competência: pensar prazerosamente, como se fosse um jogo divertido. Não é algo facilitado pela nossa cultura conservadora, portanto, exige esforço. Podemos treinar nossa mente para repensar o que ocorre e nos chama a atenção. Buscar alegremente (como num jogo de adivinhação) o sentido, o porquê, quais as intenções, quais as consequências. O prêmio é o prazer de tornar mais complexo o que parecia tão simples. O prêmio é compreender mais o que já compreendíamos medianamente.  

 

Esse jogo pode ser jogado sozinho, ou com companheiros igualmente treinados na brincadeira. É, confesso, um jogo muito refinado, mas também muito divertido. Quebra a rotina. Cansa um pouco, mas à medida que ficamos bons no jogo, nem cansamos mais. Jogamos com orgulho até. Seremos como os atletas do grupo de elite. Quanto prazer em ser admirado por nossa excelência!

 

No caso, excelência no pensar.

 

Quando sozinhos, pensar é um monólogo interno. O jogo é mais simples e mais profundo por ser íntimo. Jogar com outros é mais complexo, e tende a não se aprofundar. Claro, há exceções.  Há grupos, como em campeonatos de xadrez, onde todos os participantes são exímios jogadores! Então, jogar em grupo é um show! Mas, convenhamos, não é a regra. 

 

Pensar de forma divertida é como praticar esportes. Dói tudo no início, depois é só diversão.

 

No final da crônica a Clarrise afirma que às vezes o pensar brincando, brinca com a gente: é o brinquedo que brinca conosco, nos domina. E conclui: “Não é bom”.  Pensei sobre isso e concordo com ela em parte. É verdade que ao pensar, o pensamento pensa a gente. Ou seja, eu vou conhecendo a mim mesmo à medida que vou refletindo sobre o que penso. Fico mais consciente de quem eu sou. E isso pode ser doloroso. Brincar de pensar me deixa menos bobo, menos afeito às rotinas. Brincar com minhas reflexões, permite que eu entenda mais o que me cerca. Isso me tira da eterna infância da rotina mental. Talvez não seja muito agradável entender o meu entorno. Entretanto, o prazer de brincar e o prazer de perceber os avanços que tal brincar fez comigo, faz tudo valer a pena.

 

Então, diferentemente da Clarisse, eu concluo: isso é muito bom.

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Era uma vez um louco muito louco...(Conto para a Educação Infantil)

 


 

Era uma vez um lugar onde havia tudo para todos. Tinha muitos rios. Tantos que ninguém ficava sem nadar se quisesse. Os rios eram cheios de peixe. Eram tantos que todos podiam pescar. Esse lugar era tão bom que as árvores tinham como fruto coisas bem gostosas. Algumas árvores davam pão. Outras estavam cheias de bolachas recheadas. No quintal das casas, tinha pé de arroz com feijão e um pomar lotado de frutas mingau com aveia. Havia árvores de todos os tipos e gostos. Além disso, se as crianças deste lugar misturassem as sementes, as árvores misturavam os sabores também. Havia frutas coloridas de vários sabores na mesma árvore!

 

Pelos campos as vaquinhas tinham torneirinhas nas tetas. Todos podiam beber leite. As vacas pretas, ofereciam café com leite. As marrons forneciam achocolatado.  As brancas, claro, tinham nas torneirinhas leite puro. As magras e brancas tinha leite light, claro! Elas vagavam pelos campos, disponíveis.  As casas eram simples e confortáveis. Eram, inclusive, muito parecidas. Tinha tanta coisa, mas tanta coisa que ninguém dizia “isso é meu”, pois todos tinham tudo e até sobrava.

 

         Um dia um jovem caiu e bateu forte com a cabeça. Pof!  Ficou maluquinho, maluquinho! Dava até pena! Ele era bonzinho, mas não estava bem da bola. Ficou esquisito, cheio de manias. Cada dia ficava mais maluco. Os médicos deste lugar legal, não conseguiam cura-lo. O jovem cada vez era menos feliz, mesmo tendo tudo. Então enlouqueceu totalmente. Sabe o que ele fez?

 

Acordou numa bela manhã e foi até o jardim da sua casa. Começou a construir uma cerca. Todos estranharam... uma cerca? Para quê? Todos se visitavam, eram amigos, e todos tinham tudo, não precisava proteção.  Ele estava cada vez mais louco, coitado! Plantou árvores no seu jardim. Criou cachorros bravos e colocou no pátio. Quando estava na pior fase da sua loucura, usou uma palavra pouco usada naquele lugar. Alguns nem a conheciam. Ele disse:

 

Não entrem aqui. Essa casa é MINHA. Este cachorro é MEU. Estas árvores são MINHAS.

 

No início as pessoas riram. Ora, que ideia estranha essa de ter coisas! Se ele tinha um cachorro, todos tinham também. Se amava bichinhos, todos amavam também. Se ele tinha casa, todos também tinham! Que jovem louco! Todos riam e não davam ouvidos ao rapaz.

 

A loucura aumentou. Um dia ele pegou mais um cachorrinho da rua e disse a todos:

 

Vocês têm UM cachorro e agora eu tenho DOIS. Vocês têm UMA casa e eu vou construir outra para ter DUAS casas!

 

Algo estranho aconteceu! Talvez aquela loucura fosse contagiante! As pessoas pararam, emburrecidas, para pensar sobre aquelas ideias do louco. E, pasmem, acreditaram nela! 

 

Como se forrem vírus, as ideias malucas infectaram as pessoas.

 

Muitos foram correndo para suas únicas casas para construírem muros e fazerem mais casas. Então alguns teriam UMA coisa e outras teriam DUAS ou MAIS coisas! Que loucura, como acreditaram que uma coisa é pouco, e que é melhor ter mais???? Se é difícil cuidar com carinho poucas coisas, como cuidar de várias! Um absurdo!!!!

 

O jovem louco piorava. Inventou mais ideias loucas. Chamou seus irmãos e disse que precisava cuidar das suas DUAS casas e de seus DOIS cachorros. Afinal, alguém poderia pegar as coisas que ele tinha em excesso, e que os outros só tinham UMA. Ter o suficiente caíra de moda! 

 

Todos ficaram mais loucos ainda. E passaram, por puro gosto, a proteger os que tinham mais que os outros! Quem tinha UMA coisa, protegia quem tinha DUAS ou mais! Ora, pensavam, hoje eu tenho UMA coisa, mas amanhã posso ter MAIS. Então, é preciso proteger o meu futuro e defender os excessos!

 

Tempos depois, todos já doentes da cabeça, aconteceu o pior. Alguém tentou pegar o que o outro tinha sobrando. E quem protegia o que era excessivo, teve que bater em alguém que só tinha UMA coisa, e que tentou ter DUAS.

 

Ninguém mais foi feliz ali. Tu podes imaginar porquê?

 

 

Pauta dos costumes. Vamos falar sobre ela?