domingo, 7 de fevereiro de 2021

A ira, o pensador Sêneca e os broncos

 

 


 Já fiz inúmeros artigos e vários vídeos cujo tema é o ódio, sempre duradouro e profundo. Já discursei muito relacionando este sentimento com a extrema direita, pois são inseparáveis.  Mas, ao retomar o livro do Sêneca Sobre a ira / Sobre a tranquilidade da alma, ocorreu-me novas possibilidades de entender os sentimentos que nos assaltam atualmente.

     

Obviamente, a leitura de Sênica me fez pensar a ira.

 

Ela não é o ódio. Apesar de ser tão profunda quanto, ao contrário dele, é rápida como um raio possante e fatal. A pessoa irada é semelhante ao louco sem sê-lo de fato. A ira não é uma patologia tratável pela psiquiatria. É semelhante à loucura, porque também exclui a racionalidade (saudável). O irado, assim como os insanos, é capaz de fazer coisas que normalmente não faria. Mas, não é a mesma coisa que a loucura, pois é possível evitar a ira antes que ela exploda.

 

Melhor impedir a ira antes de sua ocorrência. Durante a atuação desta energia terrível, a pessoa irada não pensa no que faz.  Melhor dizendo, só recobra a lucidez no segundo seguinte ao que já fez. Então é tarde. Um segundo mais tarde.

 

 O sujeito irascível até pode se arrepender. Então entra numa espécie de luto. Entretanto, o arrependimento significa que o mal já está feito. A pessoa pode até desejar que o tempo volte. Mas, ele não volta.

 

Há pessoas irascíveis que não se arrependem. O hábito da ira já as consumiu. Degeneradas, não há espaço para a reflexão.

     

Segundo o estoico Sêneca, toda a ira é ruim. Afinal, se estamos irados, não estamos racionais. Se estamos racionais, não estamos irados. Portanto, não podemos deixar a ira acontecer, pois ela consome a nossa capacidade de raciocinar.

     

O filósofo estoico ensinou que em um primeiro momento, o que nos ofende (num primeiro abalo da alma) ainda não é a ira. É preciso que a alma aprove um segundo passo (como veremos adiante). Se a razão não é acionada, esta paixão violenta assume o controle sem filtros. Vai direto do primeiro momento de abalo sofrido à violência vingativa.

 

Sem a razão, em segundos reagimos irados.

 

Primeiro a pessoa sente o movimento que a atinge.  Julgará se é uma agressão ou não. Julgando ser uma injúria, ainda há outro passo, decidir se vai revidar ou não. Percebamos que como animal que somos, assim como todos os outros animais, nos abalamos com aquilo que nos atinge. Mas nos diferenciamos da animalidade quando julgamos este abalo. Ao julgarmos a ação sobre nós como ofensiva, assim o fazemos como sujeitos culturais, que podem se ofender com algumas coisas e não com outras.  Mais nos distanciamos dos animais quanto mais interpomos entre a injúria sofrida e a reação, a razão. E esta nos dirá como reagirmos, em que grau e se devemos de fato reagir.

      

Exemplifico. Um carro me fecha no trânsito e o motorista amalucado grita: Seu filho da p*!

 

O que ocorreria comigo? Primeiro eu reagiria manobrando o carro para evitar a colisão. Meu sangue começaria a ferver, pois fui também agredido verbalmente. Até aqui, nada de racional, apenas reações automáticas. Surgem outros passos, agora reflexivos. Meu julgamento me autoriza a decidir que o motorista errou. E mais, autoriza a ratificar o meu sentimento de ser injuriado pela ofensa proferida. Entretanto, antes de permitir o revide, a razão faz outros alertas:

 

Qual a vantagem da vingança? Não houve danos e o outro motorista já está se afastando. Não há sequer uma ameaça que se mantenha sobre mim.

 

A razão aponta que eu também já mandei mentalmente mil motoristas à p* que pariu. Alerta que certamente eu também já cometi equívocos no trânsito. Após estas reflexões, toda aquela energia que tendia a me fazer reagir violentamente, dissipou-se.

     

Neste exemplo, o uso da razão impediu o surgimento da ira. Entretanto, se me irasse, esta emoção esmagaria a razão. Provavelmente eu agiria com violência e teria como reação mais violência ainda. Talvez até provocando a minha morte ou do agressor. 

 

Vejamos que a ira é sempre desproporcional a injúria. Neste caso, de uma simples infração de trânsito ao risco de provocar a morte.

 

Nós somos os únicos animais que podemos julgar o que nos acontece. Julgamos por que somos conscientes da nossa história, por que somos sujeitos políticos e argumentativos. Neste contexto cabe a pergunta com que me afastarei de Sêneca:

 

Todos usamos em igual medida a razão para julgar?

 

A razão só existe em nós por que somos sujeitos de linguagem. O que permite que possamos defini-la, para fins deste texto, como: a capacidade de julgar os fatos com argumentos (para justificar os fatos ou para entende-los). É a capacidade, através dos argumentos, de tirarmos conclusões.

 

Após tirarmos as conclusões, podemos resolver os problemas que as relações humanas nos impõem.

 

Respondendo a pergunta anterior: entendo que nem todos usam a razão com igual maestria. Há os mais hábeis. Aqueles que estão acostumados a interpretar, a argumentar, a compreender e a manter-se aberto aos argumentos novos. Ao contrário, há os sujeitos broncos, egocentrados. Desacostumados a argumentar, apenas afirmam suas verdades e pouco ouvem. Para estes, assim como sabem que a terra é plana, suas certezas centradas em suas vivências valem para todos.

 

Os broncos se sentem como se fossem o norte das bússolas. E como sabe-se, caso a bússola não marque o norte, o que está errado é sempre o equipamento. Deve ser consertado ou (preferencialmente) descartado.

 

Quando a razão é frágil, danificada pelo pouco uso que o sujeito dela faz, a criatura bronca ao se sentir atingida por outra pessoa, salta rapidamente para a ira e da ira para a violência. A razão enfraquecida não tem força para conter o sujeito bruto. 

 

Então, como qualquer animal, ao sentir-se ofendido salta para a agressão sem escalas.

 

Quem é o sujeito bruto, bronco? Aquele que não lê textos complexos, que tem pouco vocabulário, pouca imaginação  e a capacidade de interpretação esta seriamente danificada.

 

Para o bruto a ira é um hábito, a reflexão uma exceção. São mais instintuais que racionais. São perigosos.

 

A ira não é coragem, é burrice. A hesitação não é covardia, é reflexão. Coragem é refletir, avaliar, equalizar e responder civilizadamente. Quanto mais estúpido e ignorante, tanto mais irado é.  É quase uma fórmula matemática.

 

Agora reflitamos, nós que não somos brutos.

 

Quem nos rodeia? Quem são odiadores? Eles pregam a violência e a morte? Adoram torturadores e dizem que o racismo não existe? Gostam das ditaduras e rezam em igrejas vendidas?

 

Caso as respostas sejam afirmativas, cuidado. Com certeza cultuam a ira.

 


 

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

A angústia, o medo e a liberdade: jogo da manipulação.

 


 

A política nacional por volta de 2015 iniciou uma viagem por águas intranquilas. As concepções mais conservadoras na política (ou da antipolítica) optaram pela disputa acirrada e crescentemente agressiva.  Foi abandonada a opção pela tranquilidade, pelo diálogo e pelo consenso. Contrariamente optou-se pela discórdia, pela divisão e pela desconfiança.

 

A ponderação racional caiu em desuso.

 

Inúmeros cidadãos optaram pela dissolução das possíveis respostas apaziguadoras. Mesmo as oriundas das ciências, dos diálogos, enfim, da política como a arte da resolução de conflitos. Neste ambiente deliberadamente belicoso, oscilamos entre a angústia e o medo.

 

O conflito e o consequente acirramento têm seu ápice nos gritos pela dissolução do parlamento e do judiciário, objetivando o desfazimento da ordem estatal. Surge o imbróglio: sair do Estado seria a solução para manter o Estado. Matá-lo na crença da sua ressurreição santificada.

 

A maioria destes cidadãos não estão conscientes do que fazem. Estão possuídos por força estranha, destruidora e autodestrutiva. Quase como nos filmes de possessão demoníaca.

 

Quem domina estas pessoas?

 

Não é novidade dominar e manter a dominação do povo através do medo. O medo é uma emoção que nos leva a fugir ou a atacar. É reativa, pois é a posteriori. Surge a ameaça e revidamos. É possível que apenas creiamos (uma ilusão talvez!) que a ameaça está na esquina próxima, e agredimos o primeiro coitado que surgir dali.

 

O medo é real para quem o sente, apesar de ser inúmeras vezes infundado.

 

Não é possível dizermos que há um medo moralmente aceitável e outro não. Medo é medo e pronto.

 

A aposta no terror ao comunismo, é exemplo clássico do medo deliberado. As classes médias são as vítimas preferenciais. Sempre caem nesta historinha e não aprendem. Quando o medo se expande saem às ruas bradando palavras de ordem. Bem pouco tempo atrás este inimigo, o comunismo barra pesada, objetivamente se apresentou na forma de médicos. Os médicos cubanos. Eles foram defenestrados da nossa saúde pública.

 

É fato, o medo real ou ficto é um fator de controle social.

 

Mas nem tudo é tão agudo como é o medo. Há nuanças imprecisas que também nos manipulam. Observemos outro exemplo bem atual. Há assalariados que morrem de medo da taxação sobre as grandes fortunas, como já aconteceu na Argentina. As classes médias acreditam em duas premissas altamente imprecisas. A primeira premissa: tal imposto recairá em seus salários. Confundem seus salários com as grandes fortunas. É risível, concordo. A segunda premissa: a taxação ocorrerá em breve. Amanhã, talvez. Sem discussões pela sociedade e no Congresso. Sequer haverá limites. Algo como: amanhã todos os valores imagináveis serão taxados em noventa por cento. Estas premissas imprecisas geram angústia.

 

A angústia é mais eficiente que o medo, pois é lentamente perniciosa.  É um sentimento que se baseia não no hoje. Se baseia na expectativa de algo ruim que ainda não existe, mas que está se iniciando. Ficamos angustiados a priori. A angústia é uma expectativa imprecisa. E por ser imprecisa, é uma tensão que nos oprime em função de uma apreensão/ameaça difusa.  Vamos exemplificar com algo atual. Percebamos a atual mania de crer em teorias da conspiração. Ela tem caráter impreciso, disseminado e global. Enorme angústia gerada pelo que poderá vir.

 

Algumas pessoas de algum lugar, mancomunados com não sei quem e super financiados por dinheiro espúrio de alguém em algum lugar do mundo, vão disseminar a cristofobia planetária.  Então cristãos e não cristãos, deístas e ateus se angustiam: quem será a próxima vítima de alguma perseguição mundial? Eis a ameaça difusa.

 

 A angústia sempre é maior daquilo que nos angustia. Ela é sempre desproporcional. A melhor solução para nos livrarmos da angústia é nos mantermos às claras.

 

Temos que evitar quem aposta em forças obscuras, quem não se explica bem, quem é enigmático e pouco compreensível.

 

O obscuro e enigmático extremista ensina que o diálogo é enganação e mentira. Nunca dirá que o diálogo é importante. Não pode incentivar a discussão, pois ela esclareceria sua obscuridade trazendo-a à luz do dia.

 

A luz dissolve o que é obscuro!

 

O apocalíptico extremista dirá que é melhor pedir intervenção militar. Ensinará que o golpe é melhor do que o voto, do que as assembleias públicas, os plebiscitos e os referendos. O extremista proclamará que assim teremos menos angústia e mais ação. Claro que serão os outros (e não o povo) que agirão. Quanta facilidade quando terceirizamos a vida pública!

 

É fato, a angústia disseminada por ser sombria e fantasmagórica, e´ outro fator de controle social.

 

Ainda outro elemento de controle: a liberdade.

 

Apontarei outro elemento que compõe a tríade da manipulação dos extremistas. Falaremos da liberdade, aquela liberdade que nos limita.

 

A liberdade é muito mais que nos livrarmos da opressão, do comunismo, dos médicos cubanos, das grades e das coisas similares. Ela é bem mais sutil do que acreditam os extremistas.

 

O extremista não percebe as sutilezas nem lê o que é complexo.

 

Segundo o filósofo Kant, a liberdade se fundamenta na autonomia. Com isso quero dizer que a pessoa é livre quando ela se dá suas próprias regras. Evidentemente que balizadas pela razão e, através dela, a pessoa age de acordo com as leis morais. Por consequência, não segue ninguém além dela própria. Vê-se que a liberdade é bem mais que escapar de grilhões. Ela é principalmente ter a plena consciência e o poder de escolha entre as opções possíveis para quem escolhe.

 

Quem é livre, escolhe autonomamente. Quem não é livre já tem tudo (pré)escolhido e pronto. É como ir a um jantar com pratos já determinados. Não há como escolher outros. Por outro lado, o convidado não é responsável pela qualidade do que é servido.

 

Percebamos que hoje há infinitas escolhas a fazer. Desde produtos para comprarmos a religiões para seguir. Há tudo para todos os gostos. Há ideologias prontas e ideologias que negam as ideologias. Há mais opções que tempo para escolher. A internet informa tudo e tanto que desinforma e tonteia. Cada vez mais é preciso estudar, refletir e ser precavido para escolher bem. E isso leva tempo, preparo e esforço pessoal. 

 

 

As ideologias extremistas adoram a (hiper)liberdade de escolha.

 

Por quê? Vamos desenvolvendo nossa tese. A angustia de não saber o melhor a escolher, junto com o cansativo trabalho da preparação para bem escolher, angustia muito. É desprazeroso. Para piorar, as ideologias extremadas desprezam a ciência (a mais confiável base para as escolhas). Por consequência, as escolhas tendem a se basearem no vácuo do achismo e na ancestralidade da busca de prazeres sensoriais. E Deus, o sabedor de tudo? O extremista perguntará: qual deus? Só há o deus dele. Nos alertará para os falsos profetas!

 

A extrema direita desconfia de tudo que não seja ela mesma. E quando destrói toda a confiança que embasaria as escolhas dos sujeitos livres, ela mesma se coloca como a única opção. Ou seja, não há mais o que escolher, pois só há uma escolha verdadeira!

 

Chega de liberdade de escolha, o extremista diz! A liberdade angustia e cansa. O cidadão de bem deve confiar em quem sabe o que é melhor. Bom mesmo é a verdade já pronta. É como o prato pronto do pequeno restaurante. É farto e sacia. A pessoa chega e não escolhe nada além do já posto. Sem angústias, sem surpresas. Alguém já preparou tudo, já pensou em tudo.

 

Aqui está a falsa liberdade: sem base alguma não há como bem escolher. Há apenas um vácuo. Então estamos livres para abdicarmos da nossa autonomia. Aceitamos um líder que nos guiará e nos determinará.

 

Os extremados solucionam o problema das escolhas múltiplas que exigem tanto esforço. Escolhem pelas pessoas.

 

Agora já posso afirmar que as ideologias extremadas precisam do medo, da angústia e da (pseudo)liberdade para controlarem politicamente os cidadãos.

 

O cidadão aprendeu a desconfiar de tudo. Também aprendeu a confiar apenas nas notícias que versam sobre ameaças iminentes (que amedrontam) ou futuras (que angustiam). Geralmente são apenas invencionices. Os cidadãos então esperam uma solução rápida, pois o desconforto é crescente.

 

Um salvador da pátria é cada vez mais bem-vindo.

 

Destruída toda a confiança e maximizada artificialmente a liberdade, a própria desconfiança foi valorada como confiável!

 

O medo mais a angústia, mais a falsa liberdade. Eis a fórmula do caos.

 

Para resolver o medo e a angústia, surge o líder forte, verdadeiro, grosseiro e tosco. Entretanto, incorruptível e sabe o que é melhor para o povo assustado. Como bônus o mito já vem ungido por religiosos conservadores ao máximo. Eles dizem: Basta ter fé e seguir os líderes.

 

A crença no mito traz novamente a segurança. O povo não precisa mais escolher e lutar. Já tem quem faça isso: o terceirizado, o mito que tudo resolve.

 

E agora, o que fazer?

 

É preciso sair deste círculo de desconfiança, de ódio e de violência política. Para isso, urge ouvirmos as forças sociais que querem reorganizar, que querem retomar a confiança na política e que comuniquem esperança. É preciso retomar o contato com as comunidades que sofrem, com os trabalhadores, com os humildes, com os líderes populares e com as universidades.

 

Confiantes, apaziguados, esperançosos e fraternos, tornaremos a figura do mito algo inútil.

 

Como vimos o caos é favorável à extrema direita que quer nos dominar. Na contrapartida, a esperança favorece as ideologias da fraternidade, da cooperação, da igualdade social e da autonomia para agir dos cidadãos. 

 

É preciso retomar a confiança na humanidade e na civilidade.

 

Para os verdadeiramente livres e fraternos não será difícil escolher o melhor caminho a tomar. Até porque só há uma única bifurcação: ou somos conduzidos ou somos condutores da vida política. Não há uma terceira via.

 

Sem angústia, sem medo e verdadeiramente livres: Cheque mate no jogo da manipulação.