sábado, 7 de novembro de 2020

Por uma razão cordial



 

Nem tudo a gente explica. A casualidade sempre faz das suas. Hoje ao procurar um livro entre tantos outros, derrubei por descuido o livro do Leonardo Boff, Ethos Mundial – Um consenso mínimo entre os humanos -, da editora Letra viva. Livro lido há anos. Reli o capítulo cinco e o seis, respectivamente intitulados: “O Pathos e o cuidado como nova plataforma do ethos humano e planetário” e “Imperativos mínimos de uma ética mundial”.

 

 

 

 

 

Daí veio as seguintes reflexões.

 

Tanto a humanidade historicamente falando, quanto os bebês que hoje nascem, não surgem no mundo já racionais. No máximo surgimos no mundo fático como sujeitos potencialmente falantes e racionais. Potencialmente!

 

Entretanto, para desenvolvermos estes atributos precisaremos de tempo e esforço. Refiro-me ao tempo biológico de desenvolvimento das nossas capacidades neurológicas e a outro tempo: o tempo cultural (e de esforço) da linguagem, dos valores (morais e éticos) e do cálculo (matemático e lógico).

 

Como espécie e como pessoas individuais, precisamos desenvolver quem somos. Portanto, não surgimos sujeitos que discursam, calculam e transformam o mundo. Contrario sensu: nascemos não falantes, não calculantes e não desejosos de lucro.

 

Lucro é uma categoria de valor muito recente na humanidade.

 

Nascemos como carentes de tudo. Principalmente carentes de proteção. Sem cuidados, morremos. Quem nos cuida? Os já adultos. Os que já foram cuidados e sobreviveram. Os que já aprenderam sobre o próprio cuidar.

 

Nosso primeiro contato com os demais seres é de necessidade e de cuidados. Apesar de já nascidos, ainda somos um pouco mais que fetos por algum tempo. Depois, e só depois de sermos apenas necessidade de cuidados, aprenderemos o resto, ou seja, aprenderemos a ser pessoas.

 

Não é fácil aprendermos a sair da dependência. Pior ainda é aprendermos a cuidar dos outros. Ser cuidado é um fato biológico. Cuidar é outra coisa. É um aprender num contexto histórico. Digo isso por que é na história que se desenvolve o que entendemos por amparar o outro.

 

Vejamos, como exemplo, o conceito de meritocracia (desemparo total, o salve-se quem puder). Este saber levou muito tempo para ser criado e mais tempo para se sedimentar nas sociedades.

 

Nascemos fadados a sermos cuidados pelos mais velhos. Não é o mesmo na hora da sociedade ensinar a quem devemos cuidar, por quanto tempo e o porquê de fazermos isso. A sociedade primeiro define os valores das coisas e das pessoas, depois ensina o que e quem devemos cuidar.  Portanto, é uma escolha que se faz na amplitude do fazer político.

 

É doloroso dizer isto na mesma medida em que sabemos que falamos da realidade.

 

Não aprendemos a ser cuidados (é uma questão biológica), mas temos que investir muito no ensino do cuidar.

 

A palavra cuidado pode ser utilizada em dois sentidos.  Podemos usá-la no sentido de atenção concentrada, como acontece quando realizamos com atenção um cálculo matemático muito complexo. Também é possível usá-la no sentido de zelo, interesse, preocupação, ter reponsabilidade sobre algo/alguém. Percebamos que um sentido não exclui o outro quando nos reportamos ao afeto que devemos desenvolver pela humanidade e pelo planeta.

 

Usei a expressão afeto que devemos ter. Dever: porque é uma questão moral e ética. Um biocentrismo.

 

É preciso ter extremada atenção aos valores que cultivamos. É preciso ter zelo com o que ensinamos a amar. Afinal, só cuidamos espontaneamente do que valoramos, do que amamos. Percebamos que antes mesmo de atingirmos a racionalidade e a capacidade de falarmos, junto com o cuidado que recebemos enquanto infantes, aprendemos o que cuidar, quem cuidar e como cuidar.

 

Aprender o cuidado antes de desenvolvermos a racionalidade não é excluí-la. Ao desenvolvermos os valores que nos levam ao cuidar, estamos orientando a razão, não excluindo-a. O Boff faz menção à razão cordial. Pois é, antes da razão matemática, excludente e afeita a meritocracia capitalista, podemos escolher desenvolver a razão cordial.

 

A cordialidade, como é bem sabido, nos relaciona ao que é motivado pelo coração. Ou seja, nos relaciona ao agir afetuoso, carinhoso e amistoso. Sim, é possível uma razão que seja amigável.

 

Uma razão amorável, eu diria.

 

Não estou sendo poético. Estou sendo realista. Quanto menos amor, fraternidade e cuidado, mais violência, fascismos, exclusões e guerras.

 

Portando, mais cuidado e menos competição. Mais renda para todos e menos pobreza. Estas são atitudes racionais e favoráveis a vida de todos.

 

A razão por si só não exclui a fraternidade, nem o comércio. Não exclui o afeto e o trabalho. Não exclui a felicidade e o empenho.

 

A razão está a serviço dos valores que elencamos como principais.

 

Que aprendamos a cuidar antes de lucrar. Que aprendamos a razão cordial antes da razão competitiva

 

Aprender antes. Aprender enquanto somos cuidados. Aprender antes os valores para depois sabermos o que fazer com a razão.