segunda-feira, 7 de setembro de 2020

A aceitação do (des)governo e o mecanismo de defesa.

 



     

Este texto fará um passeio pela psicanálise, psicologia e sociologia.  Um passeio despretensioso, como quem passa de trem observando a paisagem.  En passant.

           

Para subirmos os três degraus dos argumentos por mim idealizados até chegarmos à conclusão, vou começar falando o que é um mecanismo.

 

 O primeiro degrau. Por mecanismo podemos entender um conjunto de elementos que agem de forma harmônica para um fim. Se pensarmos num relógio mecânico, todo o seu maquinismo age de maneira harmônica para um fim: registrar, marcar a hora corretamente. Só podemos falar em harmonia tendo como parâmetro a finalidade do mecanismo.

           

Podemos imaginar, por semelhança com a definição anterior, um mecanismo psicológico inconsciente que age para nos defender. As vezes de eventos externos (da realidade), outras vezes de internos (da nossa psique).  Este mecanismo age protegendo nosso Ego (inúmeras vezes nos protegendo de nós mesmos).

     

Quer um exemplo pueril? Uma criança que vê seu bichinho de estimação morto e logo vai dizendo que ele está dormindo. Apesar dos sinais evidentes de morte. O mecanismo que ela usa (ou ela é usada pelo mecanismo) é a negação (da morte do seu objeto de amor). Quanto maior a negação, maior o amor da criança pelo animalzinho.

           

O princípio: quanto mais importante for o que está em nós, maior a ativação da negação para sua proteção (que pode ser por ocultamento).

           

O segundo degrau.  A desfiguração da realidade pode ser um sintoma da ativação de um mecanismo: a negação como mecanismo de defesa.

     

Nego/oculto para defender algo de extremo valor que está em mim. Valor positivo (um amor por exemplo) ou socialmente execrável (um abuso sexual por exemplo). Percebamos que se aceitamos o valor social que execra algo, este valor se internaliza e vai causar dor se eu fizer/sofrer este “algo”. Então, nego para mim mesmo (e por consequência para os outros) esta ocorrência.

           

Caso eu tenha internalizado duas coisas antagônicas, é excepcionalmente doloroso. Observemos a seguinte situação como exemplo.

 

Sou racista e também sei/internalizei que o racismo é execrável. Uma saída para não adoecer é defender um candidato racista. De que maneira?  Salientando nele apenas as outras características (que não o racismo). Desta forma se torna possível eu defender o racismo na prática (se eleito o candidato) e ainda garantir um discurso antirracista para mim. É só negar a realidade preconceituosa do candidato. Afinal, quem agirá como um racista é o outro, não eu. Nego (para mim e para os outros) que o candidato seja contra negros, assim como nego que votei nele por saber como ele de fato é. A negação me salva de ter que assumir (para mim e para os outros) quem eu sou e o que fiz. Como bônus, garanto – ao negar – que não vou precisar mudar internamente. 

           

O mecanismo de defesa protege meu Ego de se dissolver, de amalucar. Para ter sucesso, este mecanismo é inconsciente.

     

Caso seja algo consciente, é uma artimanha ou mau-caratismo (foge ao foco do texto).

           

Entretanto, todo o mecanismo para agir e se manter agindo precisa de energia. Então, fácil imaginar que manter a negação causa desconforto, mal-estar, estresse e angústia. Quanto mais a realidade exige do sujeito que a perceba tal qual é, tanto mais energia psíquica será exigida para manter a negação. A dor de negar (e manter a negação) deve ser menor que a dor de perceber a realidade e ter que internamente mudar.

     

Não é prazeroso nem provoca paz interna negar.

           

Terceiro degrau. Por que as pessoas negam a realidade do (des)governo atual? Por que negam o caráter esquizofrênico do presidente com suas confusões mentais e seus delírios persecutórios?

 

           A resposta pode ser uma espécie de mecanismo de defesa grupal. E por ser grupal, cada um fortalece a negação do outro.

     

Evito a palavra classe social, pois mesmo elas são mantidas pelas associações entre grupos.

           

Será possível o(a) cidadão(ã) cristão(ã), democrático(a) e altamente civilizado(a) dizer claramente que é racista, escravocrata, defensor da meritocracia que decide quem vai ser miserável? Talvez para alguns sim. Há grupos nazistas por aí. Mas, creio que a maioria se sente melhor negando sua inumanidade interior. Negam a vontade de morte demonstrada pelas falas do presidente para poder negar a sua própria. Negam que a terra é um globo e que a pandemia mata, para poderem esconder que se sentem seguros em suas casas e escritórios. Escondem que se alguém morrer, não serão eles (crença falsa. Falsidade também negada!). Quem morre é sempre o outro; é o credo destes.

           

Negar tudo isso é existencialmente caríssimo. Além de pagarem o “mico” de afirmarem a terra plana, que o comunismo é um ente real diabólico, que a universidade é subversiva e seguirem o astrólogo Olavo de Carvalho, ainda correm o risco de, ao negarem a pandemia, adoecerem ou verem algum ente querido se contaminar.

     

E por que não desativam o mecanismo de defesa?

           

Porque o custo é alto demais. Seria o cristão dizer que quer a morte de outro cristão (que pensa diferente ou que cometeu um crime). Seria como o hétero vigoroso aceitar que tem atrações estranhas por outros cidadãos de bem. Seria como o lojista cidadão de bem aceitar que prefere a morte dos clientes pelo vírus fatal, que fechar a sua loja. Como o dono de uma escola infantil que quer abrir suas portas, poderá aceitar em si mesmo que não se importa com a saúde das crianças?     

 

Nega sem poder fazer diferente, pois teria que aceitar que é uma criatura egoísta e desumana.

 

E tem mais: sendo eu parte de um grupo negante, reconhecer o que eu escondo é reconhecer que os outros também escondem algo. Quebraria o pacto de ouro do silêncio sobre o que o grupo é de fato. Afastaria-me do grupo e o grupo se afastaria de mim.

           

O famoso “pobre de direita” teria que aceitar o fato simples: que é pobre, dependente, subserviente e dispensável no mercado de pessoas que precisam de trabalho. Seu narcisismo sofreria golpe terrível desorganizando sua psique.

           

A classe média nega as maldades governamentais por que ela, caso não negasse, teria que aceitar que este (des)governo realmente a representa. Representa o que há de ruim nela. Portanto, o que não quer ver/saber de si mesma.

           

A classe média nada mais é que o muro ideológico que separa os miseráveis dos ricos. A classe média é pobre. Mas é feliz em negar isto olhando para os miseráveis como sujeitos de menos valia.

           

O que o grupo mais nega é o que mais ele é. Se nega que o corrupto é corrupto, é por que tem apreço pelo enriquecimento fácil.  Se nega que alguém disse que estupraria uma mulher mesmo quando a afirmação está em vídeo, é por que aceita tal coisa. Mas, em todos os casos, não pode se conscientizar que a corrupção e o estupro estão dentro de si mesmo.

           

Não tem força para sustentar as mudanças que a aceitação da realidade o forçaria a realizar. Desnudar-se dói demais. O mecanismo de defesa então deixa o outro sofrer, cegando-me para o fato que sou eu que o deixo sofrer.

           

Creio que assim fica mais fácil entender a quantidade enorme de pessoas que defendem o “coiso”.

           

Para não desacreditar na humanidade, prefiro pensar que adoecemos do espírito. Talvez a nova eleição seja a catarse que nos cure de nós mesmos, dos nossos demônios internos.

           

Assim espero.

           

     

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Triste Brasil das ideias emojis





Todos nós já usamos os emojis. Os jovens já nasceram usando, como numa língua paralela àquela em que foram alfabetizados.

As pessoas que ainda usam apenas a escrita alfanumérica como forma de comunicação usual, estão desaparecendo. Seduzidos, “emojitificaram-se”.

Tenho um amigo octogenário (excelente advogado!) que usa somente a máquina de escrever para fazer suas petições. Não usa, nem nunca usou, emojis. Nem precisa. Sua escrita é bela, densa e rica.

Nós já fomos seduzidos pelos desenhos de carinhas. As caricaturas pequeninas são econômicas. Cada uma delas é capaz de dispensar um enorme trabalho mental. Dispensam parágrafos inteiros!

O que é um emoji? É um pictograma, uma imagem, um desenhozinho gracioso que quer transmitir uma ideia (simples ou complexa) ou uma frase inteira. É, portanto, uma linguagem. 

Resumindo, é um símbolo que representa algo.

O interessante é que com um toque na tela do celular e com uma figura, num segundo, dizemos uma frase inteira com seu sujeito e predicado. A concordância verbo-nominal vai para o espaço. Ganha-se tempo. Sem esquecer que aquela figurinha sorrindo é universal: representa aproximadamente a mesma coisa em qualquer lugar do mundo.

Eu, particularmente, adoro emojis.

Entretanto, palavras não são emojis. Palavras não são unívocas! Em cada contexto, dizem coisas diferentes. O que quero dizer não é nada complexo. Apenas afirmo que a palavra, por exemplo a palavra amor, apesar de ter lá na tela touch sua representação gráfica (desenhozinho) predefinida, esta palavra não significa algo único. Não é como o emoji de coração batendo que surge ao tocar na tela. Ele (o desenho)  nos ilude parecendo expressar o conceito de amor (como se houvesse um conceito único). A figura pictográfica da palavra amor é uma fake News. A complexidade do amor não pode ser representada totalmente por uma figura.

 Agora imaginem a situação com a palavra comunismo! Querem que ela seja um emoji de sentido único e universal! O mesmo ocorre com a palavra gênero. A palavra feminismo, então, chega a ser risível!! Elas não podem ser “emojitificadas”, pois significam muitas coisas. Têm multissentidos.  

A palavra escrita não é um desenho com sentido pronto como é o emoji.

Emojis dizem muito com pouco. Justamente por isto são pobres. Dizem muito por que repetem sempre um sentido já padronizado. Olha-se a imagem e a representação pré-pronta vem à cabeça.

Podemos fazer o seguinte exercício imaginativo. Cada leitor escolhe um emoji do seu gosto e escreve o significado dele.  Percebe-se que é infinitamente mais difícil escrever sobre ele, do que tocá-lo na tela do celular uma única vez. Creio que ficou claro que transformar figuras em palavras é complexo.  

Então, por que seria fácil transformar o significado das palavras em coisa similar aos emojis, ou seja, como coisas com sentido limitado, pré-configurado?

Agir como se cada palavra significasse uma coisa só ou que significasse poucas coisas (parecidas com um emoji), é o empobrecimento da linguagem. Cada palavra é um mundo.

Não estou sendo poético. Estou sendo realista. Escrever e entender o escrito é codificar/decodificar, justificar, ampliar, idealizar e descrever.

Escrever é plasmar com letras conceitos e ideias.  Portanto, não te arrisca em dizer – por exemplo - a palavra aborto como se ela fosse um emoji. Ou seja, com significado único e universal, independente de contextos.

Não acredita que cada pessoa que lê o que foi escrito, verá (como nos desenhozinhos do celular) um significado unívoco.  Talvez em um grupo fechado de pessoas onde cada palavra é entendida com um único sentido, após muito tempo de treino (similar ao behaviorismo), se consiga uma unidade de sentido. Qual o custo de tal proeza? A pobreza de linguagem. Onde prevalece o sentido único, o pluralismo e a maravilha que é a capacidade de interpretação de texto, vão embora.

Os pobres de linguagem e os pobres ideológicos escrevem mal. Justificam quase nada do que pensam. Para eles a comunicação é feita por emojis conceituais. Usam poucas palavras (pois poucas se prestam a uma forçada “emojificação”). Somente ideias rasas são compatíveis com o mundo emoji de ser e de pensar.

Levamos milhares de anos para sairmos das cavernas onde escrevíamos com desenhos (pinturas rupestres), na nossa pré-história. Eram figuras de animais e caçadores com suas armas.  Escreviam desenhando, assim como escrevemos com emojis! Em tempo: a linguagem dos hominídeos era rudimentar. 

A linguagem atual é complexa. Mas tendemos a reduzi-la a chavões e a sentidos únicos. Estamos voltando a estes tempos pictóricos dos pré-históricos?

Estamos cada vez mais agressivos. Cada vez mais escrevemos “emojitificadamente”.  Cada vez mais temos preconceitos cristalizados. Cristalizados na cabeça, na fala e na escrita. Slogans são os novos emojis/mantras falados. Basta dizê-los e entendemos tudo: da pessoa que diz e do que a pessoa quer dizer.

Do antigo “Brasil, ame-o ou deixe-o” ao “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Emojis terrificantes! Grotescos. Bárbaros.

Triste Brasil das ideias emojis. Das pessoas emojis. Estamos num tempo onde acreditamos que gritar algo que todos já gritaram, é uma verdade. Nesta pobreza intelectual e “emojistica” todos parecem saber o que é o comunismo, o que é o feminismo, a questão de gênero e o caminho de Cuba. É “emojisticamente” plausível gritar: Comunistas! Vão para Cuba!

Caso alguém aceitar algumas dicas, posso dá-las.  Observa muito. Justifica tudo o que pensares. Reflete sobre cada verdade pronta. Pensa o pensamento. E o principal: lê muito, muito, muito.

 O ministério dos pensadores informa:  Usa os emojis com moderação.

Poder, política, Estado