quinta-feira, 12 de abril de 2018
domingo, 8 de abril de 2018
Princípio da presunção de inocência e as decisões do STF sobre a condenação em segunda instância - para pensar o caso Lula
Hobbes, o
renomado contratualista, criou a figura do Leviatã. Já que os homens são
egoístas e sedentos por prazeres, tendentes à guerra, faz-se necessário o
surgimento por contrato da sociedade civil. Segundo este filósofo, a sociedade será
regulada por um Estado absoluto. Entendendo que o homem é naturalmente cruel,
somente o medo da morte o contém em seus instintos. O “deus mortal” Estado, seria conduzido por
um rei com poderes absolutos, acima da lei.
Evidentemente, nesse contexto, que a discussão da justiça não era
relevante para o monarca, muito menos o princípio da inocência. Para evitar um
mal maior (dissolução da sociedade civil), o monarca poderia fazer o que
quisesse (pois está acima da lei). Então, para manter o contrato social, tudo seria
justo. Hoje, alegam, em nome de um mal maior – a corrupção – os togados estão
cima da Constituição Federal. Uma espécie de reis hobbesianos. O judiciário
seria um Leviatã acima da constituição e dos homens.
Diversamente do
ideal de Hobbes, hoje há princípios e garantias constitucionais. Uma proteção
da “natural” inocência do cidadão. As pessoas nascem inocentes (sem crime
algum) e, inercialmente, deveriam assim permanecer. Assim como não há um pecado
original (nasceríamos já pecadores), não há pessoa culpada a priori. Os
juristas chamam isso de princípio da inocência. Em consequência, para alguém
ser considerado culpado é garantido um julgamento justo, imparcial, com ampla
defesa e contraditório. Claro que isso dá trabalho. É demorado e custoso. Não é
fácil provar que alguém cometeu um crime de maneira consciente e livre. Há
sempre o risco de o estado tentar apressar as coisas. A celeridade a cima de
tudo!
A história é
farta em exemplos de atuações do Estado em que o sujeito era culpado até provar
o contrário. Vimos torturas, bruxas queimadas e pelotões de fuzilamento. No Brasil tivemos mais de vinte anos de
ditadura. A constituição de 1988 foi uma resposta ao excessivo arbítrio do Estado.
Especificamente encontramos nela o inciso LVII do art. 5º da Constituição
Federal de 1988: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória". O que não foi uma inovação em termos
históricos. Afinal já tínhamos a
Declaração dos Direitos do Homem (1789) e a Declaração Universal dos direitos
Humanos (1948), entre outros pactos e acordos internacionais. Hobbes, portanto,
perde de dez (ou mais) a zero. Hobbes
perdeu, mas não morreu. Veremos.
Conforme o CPP
no Art. 283: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem
escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de
sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do
processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. O que se
harmoniza com o art. 5º da CF/88, art. LVII (já citado). Parece muito claro.
Mas a claridade ofusca. Somente os condenados em sentença transitada em
julgado, poderão perder a liberdade. Límpido. Mas a questão é profunda. Quando
há o trânsito em julgado? Enquanto as provas são possíveis de serem
questionadas ou quando a questão é o mérito? Aqui se vê algo que não é apenas aspecto
jurídico, mas outra coisa (acima da lei). Afinal, quem decide essa questão? Os
aspectos filosóficos? (O que é justo?) Ou os aspectos políticos? (O que valerá
para o momento?) Ao decidir-se acima da lei, tornam-se os decisores togados uma
espécie de poder constituinte. (ao gosto do Hobbes).
Ao mudar o
entendimento sobre a prisão em segunda instância (agora sendo esta possível), o
artigo 283 do CPP é (ou era) a melancia que não se ajustava ao andar da carroça
do STF. Ora, então mudou-se a carroça!
Ou seja, o STF acatou a votação em que se mantinha o artigo 283 do CPP, mas com
nova (carroça) interpretação. Agora ele (o artigo) cabia na carroça. No meu
entendimento, não se respeitou o garantismo explicitado por toda a Constituição
Federal de 1988. Esse garantismo impede o início da execução da pena antes de
esgotados todos os recursos possíveis. Lembremos estes dois artigos da CF/88
(um já citado):
“LVII — Ninguém será
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”; e o
“LXI — Ninguém será preso senão
em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade
judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime
propriamente militar, definidos em lei.”
Discutir se o trânsito em julgado ocorre na segunda
instância ou no STF, não faz sentido. A resposta já está estabelecida na magna
carta! Onde nela? Em todo seu artigo 5º e em vários outros momentos. O
“espírito constitucional” aliado às convenções internacionais ratificadas pelo
Brasil, indicam que a inocência permanece até o fim de toda a persecução penal.
Portanto, apesar dos adeptos saudosos do Hobbes, somente após esgotadas todas
as instâncias, a ultima ratio se
estabelece. Lembrando que a expressão corriqueira no direito, ultima ratio, se refere a proteção do
direito penal ao que é essencial à vida. Sendo, portanto, a última opção aquela
que restringe o bem mais relevante para a vida humana. Nesse caso, a liberdade.
sábado, 7 de abril de 2018
sexta-feira, 30 de março de 2018
terça-feira, 20 de março de 2018
A Vida Ética segundo Peter Singer
Como havemos de viver?
Peter Singer
Universidade de Princeton
Há ainda alguma coisa pela qual viver? Haverá algo a que
valha a pena dedicarmo-nos, além do dinheiro, do amor e da atenção à nossa
família? Falar de "algo pelo qual viver" tem um certo travo vagamente
religioso, mas muitas pessoas que não são absolutamente nada religiosas têm uma
sensação incomoda de poderem estar a deixar escapar qualquer coisa básica que
conferiria às suas vidas uma importância que de momento lhes falta. E estas
pessoas também não têm qualquer compromisso profundo com uma cor política. Ao
longo do último século, a luta política ocupou frequentemente o lugar
consagrado à religião noutros tempos e culturas. Ninguém que reflita acerca da
nossa história recente pode agora acreditar que a política, por si só, bastará
para resolver todos os nossos problemas. Mas para que outra coisa poderemos
viver? Neste texto, dou uma resposta. É tão antiga como o alvor da filosofia,
mas tão necessária nas circunstâncias atuais como sempre foi. A resposta é que
podemos viver uma vida ética. Ao fazê-lo, passaremos a integrar uma vasta
tradição que atravessa culturas. Além disso, descobriremos que viver uma vida
ética não constitui um sacrifício pessoal, mas uma realização pessoal.
Se conseguirmos alhear-nos das nossas preocupações imediatas
e encarar o mundo como um todo e o nosso lugar nele, veremos que existe algo
absurdo na ideia de que as pessoas têm dificuldade em encontrar por que viver.
Afinal, há tanto que precisa de ser feito. Quando este livro estava prestes a
concluir-se, as tropas das Nações Unidas entraram na Somália numa tentativa de
assegurar que os alimentos chegavam às populações famintas. Apesar de esta
tentativa ter corrido muito mal, constituiu, pelo menos, um sinal positivo de
que as nações ricas estavam preparadas para fazer alguma coisa acerca da fome e
do sofrimento em áreas distantes. Podemos tirar as devidas lições deste
episódio, de modo a que as tentativas futuras sejam mais bem sucedidas. Talvez
estejamos no início de uma nova era na qual não nos limitaremos a ficar
sentados à frente dos nossos televisores a ver crianças morrer e depois
continuar a viver as nossas vidas abastadas sem sentir qualquer incongruência.
Mas não são apenas as grandes crises dramáticas e com honras de noticiário que
requerem a nossa atenção: há inúmeras situações, numa escala mais reduzida, que
são tão horríveis e evitáveis como as maiores. Por imensa que esta tarefa se
nos afigure, trata-se apenas de uma das muitas causas igualmente urgentes às
quais se podem dedicar as pessoas que buscam um objetivo digno.
O problema é que a maior parte das pessoas tem somente uma
ideia vaguíssima do que poderá ser viver uma vida ética. Compreendem a ética
como um sistema de regras que nos proíbem de fazer coisas. Não a entendem como
base para pensar acerca do modo como havemos de viver. Essas pessoas levam
vidas eminentemente centradas nos seus interesses, não por terem nascido
egoístas, mas porque as alternativas parecem inaptas, embaraçosas ou
simplesmente inúteis. Não conseguem descortinar um modo de provocar impacto no
mundo, e mesmo que conseguissem, para que se incomodariam? Não encarando uma
conversão religiosa, não veem nada por que viver que não seja os seus próprios
interesses materiais. Mas a possibilidade de viver uma vida ética fornece-nos
uma saída para este impasse. Essa possibilidade é o objeto da presente
reflexão. Aflorar meramente esta possibilidade será suficiente para desencadear
acusações de extrema ingenuidade. Alguns dirão que as pessoas são naturalmente
incapazes de ser outra coisa que não egoístas. Os capítulos 4, 5, 6 e 7 abordam
esta convicção, de várias formas. Outros afirmarão que, seja qual for a verdade
acerca da natureza humana, a sociedade moderna ocidental há muito deixou para
trás o ponto em que a argumentação racional ou ética conseguiria alcançar fosse
o que fosse. A vida atual pode parecer tão louca que é possível perder a
esperança de a melhorar. Um editor que leu o manuscrito deste livro indicou com
um gesto a rua de Nova Iorque que se avistava da janela e disse-me que, ali em
baixo, os condutores tinham começado a ignorar os semáforos vermelhos só porque
sim. Como, dizia-me ele, pode esperar que o seu livro faça qualquer diferença,
num mundo cheio de pessoas assim? Na verdade, se o mundo estivesse mesmo cheio
de pessoas que cuidassem tão pouco da sua vida - quanto mais das vidas dos
outros - nada haveria que se pudesse fazer e provavelmente a nossa espécie não
andaria por cá muito mais tempo. Mas a ordem natural da evolução tende a
eliminar os que são assim loucos. Pode haver uns quantos em determinada altura
e não há dúvida de que as grandes cidades americanas albergam mais do que a sua
quota-parte destes indivíduos. Mas o que é verdadeiramente desproporcionado é o
destaque que este comportamento tem nos meios de comunicação social e na mente
pública. É a velha história daquilo que faz a notícia. Um milhão de pessoas a
fazer todos os dias alguma coisa que revele preocupação pelas outras não é
notícia; um atirador furtivo num telhado, é. Este livro não ignora a existência
de pessoas malévolas, violentas e irracionais, mas foi escrito na convicção de
que as restantes não deverão viver as suas vidas como se todos as outras fossem
sempre inerentemente, com toda a probabilidade, malévolas, violentas e
irracionais.
De qualquer modo, e mesmo que esteja errado e as pessoas
loucas sejam muito mais comuns do que creio, que alternativa nos resta? A
demanda convencional do interesse próprio é, por razões que aduzirei num
capítulo posterior, individual e coletivamente prejudicial. A vida ética
constitui a alternativa mais fundamental à demanda convencional do interesse
próprio. Decidir viver eticamente é simultaneamente mais ambicioso e mais
poderoso do que um compromisso político do tipo tradicional. Viver uma vida
eticamente refletida não é uma questão de observar estritamente um conjunto de
regras que determinam o que devemos e não devemos fazer. Viver eticamente é
refletir de uma forma particular sobre o modo como vivemos e tentar agir de
acordo com as conclusões dessa reflexão. Se o argumento deste livro é sólido,
não podemos viver uma vida não ética e permanecer indiferentes à quantidade
imensa de sofrimento desnecessário que existe no mundo atual. Pode ser ingênuo
esperar que um número relativamente pequeno de pessoas que vivem de uma forma
refletida, ética, possa revelar-se uma massa crítica capaz de alterar o clima
de opinião acerca da natureza do interesse próprio e da sua relação com a
ética; mas quando olhamos para o mundo e vemos a confusão que nele grassa,
parece valer a pena conceder a essa esperança otimista a melhor hipótese
possível de sucesso.
Todos os livros refletem uma experiência pessoal,
independentemente do número de camadas de ilustração que a filtram. O meu
interesse pelo tema deste livro começou quando era estudante de pós-graduação na
Universidade de Melbourne. O tema da minha tese de Mestrado foi "Por que
devo ser moral?" A tese analisava esta questão e examinava as respostas a
ela dadas pelos filósofos nos últimos dois mil e quinhentos anos. Concluí
relutantemente que nenhuma das respostas era completamente satisfatória.
Depois, passei vinte e cinco anos a estudar e a ensinar ética e filosofia
social em universidades inglesas, norte-americanas e australianas. No início
desse período, participei na oposição à guerra no Vietname. Isto forneceu o
contexto ao meu primeiro livro: Democracy and Disobedience, acerca da questão
ética da desobediência a leis injustas. O meu segundo livro, Libertação Animal,
defendia que o tratamento que dispensamos aos animais é eticamente
indefensável. Esse livro teve importância no nascimento e crescimento daquele
que agora é um movimento mundial. Trabalhei nesse movimento não apenas como
filósofo, mas também como membro ativo de grupos empenhados na mudança. Estive
envolvido, novamente tanto como filósofo acadêmico como de formas mais
quotidianas, numa variedade de causas com uma forte base ética: ajuda aos
países em vias de desenvolvimento, apoio a refugiados, legalização da eutanásia
voluntária, preservação dos espaços selvagens e problemas ambientais mais
gerais. Tudo isto me possibilitou conhecer pessoas que doam o seu tempo, o seu
dinheiro e por vezes grande parte das suas vidas privadas a uma causa de base
ética; e deu-me um sentido mais profundo daquilo que é tentar viver uma vida
ética.
Desde a redação da minha tese de Mestrado, escrevi sobre a
questão "Por que agir eticamente?" no capítulo final de Ética Prática
e aflorei o tema da ética e do egoísmo em The Expanding Circle. Ao debruçar-me
novamente sobre a relação entre ética e interesse próprio, posso agora recorrer
a um passado sólido de experiência prática, assim como à investigação e a obras
de outros estudiosos. Se me perguntarem por que devemos agir moralmente ou
eticamente, poderei dar uma resposta mais ousada e positiva do que aquela que dei
na minha tese anterior. Poderei apontar pessoas que escolheram levar uma vida
ética e conseguiram ter impacto no mundo. Ao fazê-lo, investiram as suas vidas
de um significado que muitas pessoas não creem alguma vez conseguir alcançar.
Como resultado, aquelas pessoas consideram que as suas vidas são mais ricas,
mais satisfatórias, e mesmo mais empolgantes do que eram antes de elas terem
decidido dessa forma.
Peter Singer
Tradução de Tradução de Fátima St. Aubyn
Prefácio de Como Havemos de Viver?, de Peter Singer
(Dinalivro, 2005).
sábado, 17 de março de 2018
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