quarta-feira, 1 de maio de 2024

O descanso do professor que não aconteceu.

 

Visitando a chácara de amigos, o professor descansa. Chácara pequena, bem no interior do Estado. Distante oitenta quilômetros da pequena cidade. O professor sorri ao imaginar que não há escola por perto, sossego garantido. Mas, já na primeira manhã, vê o guri ordenhando a vaquinha no curral.

 

Aproxima-se do piá e é recebido com um imenso sorriso. De imediato o jovenzinho cumprimenta: Bom dia tio! O professor, também muito jovem, cumprimenta. Enquanto trabalha, o guri pergunta:

 

 - É verdade que tu “é” professor, tio?

 

O jovem e inexperiente mestre afirma que sim. A criança conta que já está no colégio. Mas que não aprendeu a escrever ainda. Não sabe escrever como a professora quer.

 

Vai ao colégio de carroça, adora o almoço de lá, e volta. Mas, disse o pequeno orgulhosamente, aprendeu a copiar as palavras. Ele olha o quadro negro com a palavra escrita e pronto, copia que dá gosto! É como se tirasse uma foto. Quase sempre não troca as letras. Mas, nem sempre dá certo. Contou que uma vez a professora mostrou a figura de um homem fardado e armado na cintura. Aí, ele copiou a palavra soldado que identificava o desenho. Quando teve que lê-la em voz alta, leu: polícia! Ora, concluiu o piá, se o desenho parecia de polícia, como estaria escrito soldado? Só podia ser polícia! As coisas, segundo ele, são iguais as palavras. É como se as coisas tivessem rótulo. Pedra se escreve “pedra” porque é pedra. Água se escreve “água” porque é água. Então, questionou o guri, como polícia ia ser “soldado”? Maldade da professora!!!!!! Os coleguinhas riram. Então, já não vai mais ao colégio com gosto.

 

O jovem professor ficou triste. A hipótese tão comum feita pela criança não havia sido compreendida pela professora.

 

Uma criança sofrendo por não decodificar/contextualizar os sinais escritos. Escrevia/copiava os símbolos gráficos, mas não os simbolizava! Uma lástima.

 

O professor pergunta ao guri:

 

- Qual palavra que tu mais sabes copiar e que sempre tu acertas?

 

Rapidamente o guri falou, sem pensar:

 

- Casa.

 

- Que bom, parabéns. E o que tu gostas que tem na tua casa?

 

- Comida que a mãe faz. Hum... O celular com joguinhos. E o meu cavalo.

 

- Tu tens um cavalo?

 

- Tenho. É bem grandão.

 

- Maravilha. Então, em CAsa tu tens um CAavalo.

 

- Ô Tio... por que tu “ta” falando assim?

 

- Ouve bem amiguinho... casa e cavalo. O que tem de igual?

 

- Nada! Casa é coisa, cavalo é bicho.

 

- Ouve, ouve e ouve novamente. CAsa, CAvalo.

- Ah! Os dois começam com “ca”. (referia-se ao som “ca”)

 

- Então meu amiguinho, se tu fosses “copiar” a palavra cavalo, quais seriam as primeiras letras da tua cópia?


-O guri pensa, repensa e diz timidamente:

 

-  “Ca”?

- Muito bom, mas quais letras fazem este “CA”?

 

A criança escreve no chão o “C” e o “A”. E olha para seu orientador com carinha de medo de ter errado.

 

O professor exulta e diz à criança:

 

- Parabéns, já sabes escrever um pedaço da palavra cavalo! Também um pedaço da palavra casa. Só falta tu CAsares! – Ri.


- Verdade tio? Então, tudo que tem “ca” começa com “c” e “a”?

 

O professor percebe a mudança de hipótese. Palavras já não são o nome das coisas como se fossem rótulos, mas suas representações sonoras!

 

Pensa consigo mesmo: como é bela estas transformações.  A boniteza de ensinar é isso!

 

- Tenta tu mesmo, piá! Experimenta se o que tu disseste é verdade. Diz as palavras e eu confirmo. Cavalo e casa já não valem mais!

 

Agora é uma espécie de jogo divertido e exploratório. Já sem medo vai dizendo:

 

- Carro?

 

- Sim.

 

- Cachorro?

 

- Sim.

 

- Cascalho?

 

- Sim!!!

 

- E como escrevo o resto do meu cavalo?

- Vamos ver... Já copiaste alguma palavra que comece com “va”? Como VAssoura?

 

- Sim. Sei bem desenhar a palavra VAca.

- Está bem. Então escreve no chão a palavra vaca...

 

Rapidamente o piá escreveu com um graveto.

 

- Agora, deixa eu ver... copia abaixo só o “v” e o “a”. Muito bem. Agora põe atrás do “VA” de vaca o “CA” de casa. Como ficou?


- Ficou estranho...  Falta algo.... O cavalo é grande, a palavra “tá” muito pequena!

 

O professor riu com a criança. Nova hipótese falha. A palavra é do tamanho da coisa que ela aponta!

 

- Vamos lá. Diz agora os sons... Lembra, o “CA” de casa e o “VA” de vaca...

- Ca...Va... Cava...  – falta o “lo” tio!

- Beleza! Então, é só colocar o “L” e o “O”. CAVALO.

- Então tio, quando eu falo, cada som tem uma letra?

 

O professor está feliz: nova hipótese!

 

- Viu meu amigo? Não é tão difícil escrever. Não é para copiar palavras. Copiar é mais difícil que ouvir e escrever os sons.

 

- Posso contar isso para minha professora, tio?

 

- Claro que sim. Conta para ela que as palavras mais conhecidas são mais fáceis que as desconhecidas. Diz para ela que sempre o piá já sabe alguma coisa. Então, é só juntar as palavras conhecidas com o que o guri já sabe... aí fica bem mais fácil.

 

- Meu nome é JOão. Já sei escrever meu nome. Meu pai se chama JOarez. Posso escrever o nome dele parecido como o meu? JO de João e JO de Joarez?

 

- Claro! Vai tentando!

 

- Tio, quer me ensinar mais coisas?

 

Esta é a história de um descanso que não aconteceu. Estudar Paulo Freire tem seu preço: a eterna amorosidade e afetividade por todos que querem aprender.

“Vontade de mat@r alguém todo mundo já teve”

          Ao ouvir esta afirmação malévola, quase gritei:  Eu nunca quis matar ninguém! Ao ouvir esta infâmia, esta ofensa à humanidade do...