Prof. Amilcar Bernardi
Fácil imaginar a seguinte situação: náufragos que se
salvaram numa ilha remota. Sabedores que, por alguma fatalidade, nunca seriam
resgatados; organizam-se, dividem tarefas e estabelecem um regramento mínimo
para que pudessem conviver com alguma tranquilidade. Mas a tranquilidade é algo
por demais frágil entre criaturas racionais e egocêntricas. Logo alguém por ser
indolente, induz outro a trabalhar mais que ele. Já outro acumula o que não
poderia ser acumulado. Outra ainda, afirma seu direito natural de nada fazer ou
fazer o que quiser.
Como resolver os impasses? Quem resolveria? Para alguns a
autocomposição foi suficiente, mas para os mais emocionalmente duros, não foi
possível. A discussão dos náufragos
sobre o que é justo, cede à questão da eficácia da norma estabelecida. Daqui
para diante é fácil imaginar que estas pessoas perdidas criam um terceiro. Este
terá como função aplicar e fazer cumprir tais normas. De maneira livre, os
ilhados criam algo que os limita: o Estado. Ele resolverá os conflitos de forma
obrigatória. Os comportamentos sociais serão agora avaliados, tutelados e
regrados de forma coercitiva. Os particulares cedem ao coletivo. Surge então o
que chamamos de jurisdição. Somente após a criação deste terceiro em relação a
sociedade, é que podemos falar em jurisdição. É o Estado que arbitra os
conflitos tendendo a pôr fim às disputas; mesmo que pelo uso da força legal.
Evidentemente que o Estado moderno não é um ente que age por
arbítrio próprio, sem limites e sem racionalidade. O direito, as normas e
consensos, enfim, as leis surgem, fundamentam e legitimam o Estado e seus
juízes. É ele (com seus três poderes – hodiernamente) quem diz o direito e o
faz cumprir. Agora pode-se dizer que há
justiça, no sentido de que justo são as ações estatais - limitantes das
liberdades civis - que seguem princípios e ritos. São os processos legais
estritamente vinculados às leis.
O Estado-juiz quer a harmonia social entendida como a
existência mínima de conflitos entre particulares. Para isso é preciso que seja
legítimo e que seja imparcial. Assim ele será, enquanto manter-se nos trilhos
do direito consolidado nas constituições. Imparcial e equânime; estes são os
princípios que devem rege-lo. Ficará inerte até ser provocado: os juízes agem
quando houver interessados que os provoquem. Não haverá Estado de exceção em
tempos de paz. Sempre respeitará os direitos e garantias constitucionais.
Somente assim os conflitos serão dirimidos pela ordem jurídica constitucional.
Só há Estado porque há conflito. Só há normas e o Direito
porque há conflito. Da mesma forma, o conceito de jurisdição surge da mesma
necessidade de evitar os conflitos intersubjetivos. E só uma instituição pode
impor a paz social: o Estado-juiz.