sábado, 30 de novembro de 2013

Hojeficação (o passado que se torna hoje)

Prof. Amilcar Bernardi

Hoje eu estava relendo uma poesia de Castro Alves, meu poeta predileto. A poesia era Navio Negreiro. Absorvido pela grandiloquência e pelas rimas altissonantes, parecia que um filme de um navio cheio de escravos sofrendo, passava nitidamente na minha mente. E percebam que nunca vi um escravo nem viajei em navios negreiros. Imaginem comigo esta cena:


Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...


Numa dicotomia adolescente, quando li estes versos pela primeira vez, queria bater nas pessoas más e salvar as boas! Como se estivessem acontecendo aquelas coisas enquanto eu as lia! Mesmo hoje, ainda sinto como se os poemas estivessem sendo escritos agora. Imagino o trabalho escravo e o tráfico de seres humanos ainda hoje existentes. Quase grito: o poeta Castro Alves tinha/tem razão no seus versos de fogo! Então, percebo que o ontem e o hoje se confundem quando leio o passado no presente. O ontem é hoje. É isso que sinto.

Então o que significa o termo “distância”? Segundo o que eu senti ao ler a poesia passada/presente, distância não pode ser um intervalo de tempo ou um afastamento. Pelo menos não pode ser isso no sentido convencional, de uso diário. A escrita, notadamente a poesia e os romances, trazem o passado à atualidade espiritual/psicológica. “Hojeitifica” o ontem.

Quando reflito sobre a cibertecnologia, fica mais evidente ainda que não podemos afirmar que distante é o que está longe.  Isso porque, também não podemos facilmente definir “longe”. Quando vejo a expressão facial, quando sinto as palavras nos meus ouvidos, quando percebo pela linguagem corporal o que a pessoa está sentindo ao dizer o que diz, porém, está a milhares de quilômetros de mim, o que é então, o “longe”? Isso acontece na tela do meu computador quando minha webcam junto com auto-falantes, captura a pessoa que está no outro continente. Então, posso inclusive, intuir o que a pessoa sente ao se expressar! Se consigo uma empatia com a pessoa longe, ela está psicologicamente perto. Ler a pessoa longínqua como se estivesse ao meu lado, presentifica e atualiza a pessoa. Assim como um poema é sempre atual quando o leio e tenho sensibilidade para senti-lo, a comunicação on-line faz o mesmo.

Não vamos nos iludir que a pessoalidade dos contatos físicos será substituída. Não creio nem na possibilidade disso. O que me encanta são as possibilidades. Uma espécie de energia potencial está nos assombrando. Podemos muito e poderemos cada vez mais. Somos uma civilização potencial. Potencialmente melhores, potencialmente piores. O futuro próximo/longínquo dirá da nossa escolha.

domingo, 10 de novembro de 2013

Enterrar indiozinhos vivos e o encarceramento

Prof. Amilcar Bernardi

Enterrar indiozinhos vivos e o encarceramento
Segundo a revista Isto é (www.istoe.com.br/reportagens/1006_O+GAROTO+INDIO+QUE+FOI+ENTERRADO+VIVO) algumas tribos indígenas ainda enterram vivos seus filhos. Os fortes candidatos a esse fim terrível são os filhos de mães solteiras e os portadores de deficiências físicas ou mentais. Esta prática causa algum espanto nos seus moradores, mas não o suficiente para que seja abolida. A questão cultural é muito forte, a ponto da FUNAI ainda não ter conseguido impedir estes infanticídios.  Eu, como cidadão morador da cidade, cidadão altamente escolarizado, sinto-me mal ao saber desses fatos, porém, sinto-me assim porque vejo a situação culturalmente “de fora”, quase que vejo como se eu fosse um alienígena julgando outro mundo.
Seriam nossas prisões no século XXI uma cova social feita de concreto, para que possamos enterrar vivos nossos párias sociais? Se algum visitante espacial, visse nossas prisões não sentiria o mesmo horror quando nos deparamos com os indiozinhos enterrados vivos pelo seu próprio povo?
Ainda paira sobre as pessoas um sentimento de vingança. Sente-se um ímpeto de aumentar a rigidez das leis e ampliá-las, para que as mais diversas situações de conflito sejam previstas e reguladas pelo estado. Se por um lado, nas questões da liberdade econômica há um desejo de afastamento do estado (liberalismo), nas questões de segurança pessoal e patrimonial, o desejo contrário surge. Percebe-se uma aposta perigosa: o estado teria as condições materiais para encarcerar todos e também de alguma forma, seria capaz de fazer isso com justiça. Forçando um pouco minha imaginação, penso que seria o mesmo que imaginar que o chefe da comunidade indígena poderia enterrar confortavelmente o indiozinho e o faria com justiça. E não preciso forçar muito não, afinal, há o desejo da pena de morte e a redução da maioridade penal para os dezesseis anos. Logo teremos a pena de morte para adolescentes. 
Foucault no Resumo dos cursos do Collège de France, discorre sobre o desejo histórico de resolver o problema das pessoas que se diferenciam do sistema (ou afrontam o sistema), ou seja, como castigá-las. Evidentemente que com o tempo, passou-se a apostar nas prisões e não mais nos flagelos. Da tortura às prisões, parecia termos nos tornado mais “civilizados”. Mas, mesmo o encarceramento evoluiu. Hoje o cárcere não pode mais ser uma punição, mas sim, um local de ressocialização, uma espécie de escola de bons modos, de aculturamento e de estudos para quem, obviamente, queira estudar. Evidentemente que Foucault critica o “invento” do cárcere. Um dos argumentos desse pensador que é genial é o seguinte, se prendemos alguém porque ele lesou a sociedade rompendo o pacto social, a pena de encarceramento estaria “voltada para o exterior e para o futuro”, para impedir que o crime recomece. Portanto, e é aqui que acho que é fantástico o argumento, ao termos certeza que a pessoa fez seu último crime, porque encarcerá-lo se não prejudicará mais a sociedade? Se o crime é o último, não precisaremos prendê-lo, pois a prisão existe para prevenir crimes futuros e não para punir o que já aconteceu.
Foucault sabia que a ordem e a regularidade baseada na sociedade industrial e capitalista, faz parte do que fundamenta a origem do encarceramento. Punir e controlar são a gênese. Entretanto, penso, punir e encarcerar o corpo, que relação terá com a alma, com a (de)formação da pessoa que está à ferros submetida? Posso dizer que o que está escancarado hoje ainda é a vontade popular e governamental de produzir sujeitos dóceis, porém, o caminho escolhido já não é mais o ideal de ressocializar, mas atingir a docilidade pela punição, pela dor infligida aos corpos encarcerados (retrocesso histórico). A questão pedagógica da sociedade “civilizada” que deve ensinar aos “incivilizados”, já não é questão relevante. O desejo da pena de morte é a decretação da morte do ideal da ressocialização. Talvez a função de adestramento e docilização do individuo hoje esteja a cargo da escola. Caso esta falhe, talvez, já aos dezesseis anos (ou seja, aos falhantes no Ensino Médio) o cárcere ou a pena de morte seja a reprovação esperada e desejada pela maioria.
Parece-me que vivemos com a seguinte questão: assim como não é possível uma vida saudável fora da sociedade, de igual forma, viver em sociedade é um problema não menos complexo. A construção das instituições é inseparável da construção da vida entre muitos. O caráter normativo surge na mesma medida em que negociamos os limites da liberdade. Estas instituições mesmo que surgidas na sociedade e pela sociedade, são sentidas com algo externo, acima, pois reguladoras. Foucault as questiona, assim como outros assim o fizeram como Hobbes, Locke e Rousseau. O enfoque adotado por Foucault é novo, mas não as questões por ele apresentadas. Entendo que a questão viver entre muitos X liberdade individual é um problema insolúvel. Também posso afirmar que (em sequencia ao problema anterior) o dilema punir X educar é uma crise eterna da sociedade. Crise essa que parece, sempre, tender á dissolução dessa mesma sociedade.
Foucault sabia que desde sempre houve a tentativa de controlar os corpos. Talvez, por uma inércia no imaginário coletivo, essa tentativa de controle corporal, ainda persiste num atavismo inconsciente. Apesar dos avanços dos Direitos Humanos e dos acordos internacionais, no Brasil (não que seja menos no mundo), a mídia embala esse imaginário coletivo com cantigas de “Prende, prende e mais prisões sempre”. Não podemos diabolizar as mídias, afinal, elas em muito dizem o que as pessoas querem ouvir. O resultado disso é o encaixotamento de corpos em celas. Muitos corpos juntos, onde uns punem os outros se matando nas disputas de espaços físicos e de poder pelas facções.  A punição que o povo quer aí acontece de maneira “natural”, apenas pela ausência do estado nas cadeias.
Não menos importante, e para mim muito estranhável, é a tentativa de mensurar o dano da ação criminal através de uma medida temporal. Ou seja, um crime X tem como resposta X tempo de enclausuramento. O crime Y terá Y tempo de enclausuramento. No imaginário social, manter uma pessoa no inferno carcerário por mais tempo é justo, na medida em que sofrerá por mais tempo. Por isso, a ressocialização e uma filosofia de matiz pedagógica inexistem na prática. A lógica é: mais dor por mais tempo quanto mais dor causou o delinquente. Alem disso, mesmo que não haja prisão perpétua no nosso país, institui-se além da dor por muito tempo, a infinitização da dor de ter uma mácula para sempre. O ex-presidiário dificilmente será incorporado à sociedade. Uma espécie de ostracismo grego ampliado ao máximo na sociedade contemporânea.  A mácula é uma tentativa de “prisão perpétua intangível” onde os recém-libertos, estarão presos para sempre a um passado que nunca passa. Por consequência, grande parte desses segregados vão delinquir novamente fechando o ciclo voltando às masmorras.  Foucault sabia que “os jovens delinquentes aprendem rapidamente a serem tão hábeis quanto os habitantes antigos das celas em burlar a lei; as masmorras são escolas também”.
Seria enfadonho eu discorrer sobre o insucesso da política carcerária, do abandono dos prédios e dos presos, dos inocentes presos, enfim, falar das mazelas das penitenciárias é falar o óbvio. E o pior, quanto mais é falado sobre o insucesso do encarceramento, empodera-se por consequência os desejos da implantação da pena de morte. É discurso corrente que a violência contra o patrimônio e contra as pessoas é revoltante e injusto. Entretanto, resolver o problema social que gera a violência e o crime não é uma discussão diária, ao contrário, é uma exceção. Isso porque a solução é cara (ninguém quer pagar a conta), é complexa (ninguém tem tempo para pensar em crimes), é uma questão política, social e perigosa ao sistema capitalista.
Fica a questão: vamos resolver o problema e pagar o preço ou enterrar os presos vivos nas cadeias? Quem quer responder?