sábado, 5 de maio de 2018

O discurso de ódio não é um discurso.








Vou focar no termo já popularizado: discurso de ódio. Para tanto, vamos precisar de algumas reflexões antes.



O discurso é uma sequência de ideias, uma ordem (quando falado ou escrito) que segue normas gramaticais e (segue sempre em qualquer forma de discurso) a um encadeamento lógico. Assim é por que ele tem a intenção de comunicar, ou seja, de ser entendido pelo outro.  Vamos excluir do contexto deste artigo os loucos que falem sem nexo ou falam para ninguém.



Podemos imaginar que mentes sadias se auto-organizam para poderem discursar de maneira que as pessoas as entendam. Uma mínima (pré) organização mental é a condição de inteligibilidade dos discursos.



O ódio é uma vontade de morte. Pode ser uma morte simbólica ou de fato. Odiar é querer eliminar, é desejar que o objeto do ódio desapareça. Esse sentimento dói em quem o sente, e para afastar-se da dor, precisa aniquilar quem odeia. O sujeito odiento tem a mente desorganizada por que foca na destruição, no aniquilamento. É um desejo duradouro. O ódio é uma resposta irracional à percepção (geralmente imaginária) de uma amaça ao ego. Ou seja, o sujeito se sente ameaçado enquanto existir o que odeia.



Da onde vem o discurso? Da mente. Não é a boca que fala, nem é a mão que escreve. Estes são apenas instrumentos. Nossos sentimentos, nossa alma, nossa psique escrevem, agem, falam. Quem odeia, como afirmei antes, tem a mente revolta. É como um mar tempestuoso. Há uma desorganização dolorosa. O odiento sofre internamente com a existência do que odeia. Então, agride com palavras, gestos, enfim, de todas as formas que puder. Sabemos o que o odiento quer: a aniquilação. Mas não sabemos como o fará, pois a mente está desalinhada, está tempestuosa: é imprevisível.



Por isso o discurso de ódio é um caos. É contraditório e não linear. Cheio de raiva e vazio de conteúdo. Perguntar ao odiento por que ele odeia é uma temeridade. Quem pergunta poderá ser agredido. Isso por que o agressor sofre e está com a mente desordenada. Então, como responderá de forma organizada? Como o seu discurso será linear e compreensível? Quem odeia não pode explicar o ódio que sente, pois o ódio é caos mental. Por consequência, ele só pode aplicar o ódio agredindo. Não há como explicar com coerência (inteligibilidade) por que sente esse sentimento. O discurso de ódio é uma impossibilidade. Eu chamaria de atos (um ativismo) de ódio, nunca o classificaria como um discurso.



As mentes mais tranquilas podem discursar. Espíritos acostumados à disciplina da leitura e ao diálogo, discursam. Sujeitos habituados a dar tempo à audição e à compreensão, podem construir discursos. Fazer-se entender e entender os outros leva tempo. É algo que se aprende pela disciplina espiritual. Toda a empatia é democrática, é participativa e comunitária.



Os odientos convivem bem com outros odientos. Mas convivem melhor ainda com odientos com ódio pelas mesmas coisas. Caso odeiem coisas diferentes, podem acabar odiando uns aos outros.  



Quem odeia tem fé que possui a verdade. Os odientos tem certeza absoluta. Não duvidam nem questionam a si mesmos. A fé na verdade do seu sentimento negativo, não pode ser questionada. Afinal, o odiento não pode raciocinar sobre esse sentimento. Justamente: a sustentação do ódio está na desorganização, está no caos da mente. Justificar de maneira organizada e inteligível é esforço demasiado (mataria o ódio). Sozinhos, os odientos não conseguem superar a sua dor. Só na terapia. Só com muito cuidado e carinho, aos poucos, vão se desabituar do caos mental. Assim vão poder abandonar esse sentimento negativo de aniquilação.



Concluo pensando que o discurso do ódio não é um discurso. O ódio é um ativismo que não pode refletir sobre si mesmo. Acredito que discutir com estes sujeitos, sem a técnica das psicologias, é inútil. Eles não nos podem compreender. Estão em desordem mental, desabilitados à compreensão e aos argumentos. São contraditórios, incoerentes e raivosos. Isso por que já não podem mais ser diferentes disso. Tratar com eles não nos cabe. É serviço duro para os terapeutas mais experientes. Convém tratá-los com a dignidade que todo o ser humano merece, e com a distância necessária para não nos machucarmos.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Sobre os bens públicos


                     


                      

CLASSIFICAÇÃO DOS BENS PÚBLICOS




Para possamos trabalhar o tema bens públicos, cumpre que iniciemos pelo conceito. De certa forma parece simples. Seria bem público aquele que não pertence a particulares. Percebemos isso no Artigo 98 do Código civil:  São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.

Entretanto, tentar classificar por exclusão, não é suficiente. De maneira geral, os dicionários definem “público” como aquilo que pertence ao povo ou ainda aquilo que tem interesse público e mais, pode referir-se ao que pertence ao governo. Encontramos boas dicas aqui. Os bens públicos podem ser coisas físicas ou intelectuais. Podem ser móveis, imóveis e até animais (semoventes). Estes bens possuem características especiais: impenhorabilidade, não onerabilidade e inalienabilidade relativa. Excetuando-se os bens das entidades paraestatais (como as empresas públicas e sociedades de economia mista).

          Para que fique clara a distinção, elencamos o artigo 44 do Código Civil, que define as pessoas jurídicas de direito privado.  São elas: as associações, as fundações, as entidades, as organizações religiosas, os partidos políticos e as empresas individuais de responsabilidade limitada.

Não podemos esquecer que, em determinados casos, há bens particulares que servem ao interesse público tendo, portanto, as mesmas características de bens públicos.  O artigo 20 da Constituição Federal amplia esses bens, inserindo o solo, o espaço aéreo, o mar territorial e etc. Nesse caso, entenda-se bem público no sentido de bem protegido pelo estado. 

Bens públicos são todos os bens que pertencem às pessoas jurídicas de direito público, isto é, Estados, Distrito Federal, Municípios, respectivas autarquias e fundações de Direito Púbico (estas últimas, aliás, não passam de autarquias designadas pela base estrutural que possuem) , bem como os que, embora não pertencentes a tais pessoas, esteja, afetados à prestação de um serviço público.[1]



Classificação:

Esses bens podem ser classificados. Para isso leva-se em conta três aspectos: titularidade, destinação e disponibilidade. Isso porque existem bens dos Entes Federativos, como as terras devolutas, bens de uso especial e uso dominial. Todos são bens públicos e nacionais, mas podem ser federais, estaduais ou municipais. Ainda podem pertencer a autarquias, fundações ou a paraestatais. Pertencem cada um a entidade pública que os adquiriu.

Quanto a destinação, podemos classificar os bens públicos em três categorias. Vejamos ipsis litteris o artigo 99 do Código Civil:

Art. 99. São bens públicos:

I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; 
III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. 


Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado. 

Veja que o item I são os bens de amplo acesso público. Já o item II, bem mais restrito que o primeiro, não estão disponíveis ao público indiscriminadamente. Em princípio os rios, as ruas e as praças públicas estão disponíveis a quaisquer pessoas a qualquer tempo. Por isso se enquadram no uso comum do povo (item I). A viatura de polícia é um bem público, a arma do policial também. Entretanto, são exclusivos da administração pública. Indisponíveis ao povo, portanto (item II).  Imaginemos um prédio público desativado. Supondo que não há interesse da administração em utilizá-lo. Não tendo destinação comum ou especial, ele poderá ser vendido, pois são patrimônio da pessoa jurídica de direito público, e nesse caso, está disponível pois está sem serventia. (item III)

Em relação aos bens dominicais é possível afirmar:

(...) São os próprios do Estado como objeto de direito real, não aplicados nem ao uso comum, nem ao uso especial, tais os terrenos ou terras em geral, sobre os quais tem senhoria, à modo de qualquer proprietário, ou que, do mesmo modo, lhe assistam em conta de direito pessoal. O parágrafo único do citado artigo pretendeu dizer que serão considerados dominicais os bens das pessoas da administração indireta que tenha a estrutura do direito privado, salvo se a lei dispuser em contrário. [2]



INSTITUTO DE AFETAÇÃO/DESAFETAÇÃO



Os bens públicos são de todos. Por consequência, têm finalidade pública, existem e são mantidos em função do interesse público. Entretanto, isso não significa que após adquiridos ou construídos, alguns não possam deixar de pertencer à administração pública. Evidentemente, que haverá características especiais no desfazimento do que é público. Não é como faz um particular. O primeiro cuidado é observar a lei. É ela que vai dizer o que é (ou não é) alienável. Não pode ser similar a tentativa de desfazer-se de um hospital público e a de desfazer-se de um imóvel público totalmente em desuso. Portanto, percebe-se que a afetação ou desafetação ligam-se ao uso do bem público, a sua destinação. Alguns bens serão alienáveis e outros inalienáveis. Segundo o artigo 101 do código civil, os bens dominicais podem ser alienados (observadas as exigências legais). Daqui podemos inferir que os bens dominicais não são afetados, ou seja, são desafetados, pois não possuem uma destinação específica.

O artigo 100 do código civil indica o inverso das situações citadas acima. O artigo 100 afirma literalmente: Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar. Isso nos remete ao art. 37 da CF/88. Nele, a administração pública é chamada a atender aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, entre outros. Os bens públicos úteis ao povo ou a administração, não podem ser alienadas sem especiais cuidados. Qualquer descuido, poderá sujeitar o administrador aos ditames da lei 8429/92 – lei de improbidade administrativa. Estes bens estão afetados. Afetado significa que o bem uso público; portanto está afetado a um determinado fim público. No início deste item, falei do hospital e de um imóvel em desuso. Evidentemente, o hospital está afetado. É, portanto, inalienável.

Um bem público dominical, como um terreno sem uso num bairro; pode ser afetado. Por exemplo, a prefeitura (dona do imóvel) cria ali uma praça de brinquedos para a população. A partir desse momento, tornou-se inalienável.

Para resumir,

Nesse sentido, afetação é a condição do bem público que está servindo a alguma finalidade pública. Exemplo: o prédio público onde funciona um hospital da prefeitura é um bem afetado à prestação desse serviço.

Desafetação, ao contrário, é a situação do bem que não está vinculado a nenhuma finalidade pública específica. Exemplo: Terreno baldio pertencente ao Estado. [3]










[1] Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. Pág  807.

[2]  idem. Pág. 898.



[3] Mazza, Alexandre. Manual de direito administrativo. 2ª ed. São Paulo: editora Saraiva, 2012. Pág. 3588


segunda-feira, 30 de abril de 2018

Credibilidade e confiança: inseparáveis.







A confiança tem a ver com a estabilidade. O sujeito na sua história pessoal, sempre agiu da mesma forma. Presumivelmente, amanhã e depois agirá da mesma maneira.  A história da pessoa ou de uma instituição, conferem razoabilidade. Por consequência, propiciam a esperança de que as mudanças (se houver) serão ponderadas, processuais e previsíveis.  As autoridades públicas, notadamente as do judiciário, devem ser assim: previsíveis em suas condutas. Mais do que a mulher de Cezar, devem ser e aparentar ser. Duas faces da mesma moeda: ser e aparentar ser. A confiança vem com a experiência. O tempo faz com que eu confie. É um namoro, uma amizade delicada. Não basta apenas obter a confiança, mas mantê-la. Um deslize, uma mentira, uma oscilação e pronto, a confiança se fragiliza. Minha mãe dizia (e diz): é como um prato, quando quebra, mesmo colado, fica a rachadura.



A credibilidade me lembra ter crédito: ter disponível para meu uso um valor maior do que eu de fato possuo. A pessoa agiu sempre de tal forma, que acumulou confiança. Pode até gastar um tanto a mais, pois tem crédito moral, tem bastante ainda em depósito. Então, quando alguém diz algo depreciativo em relação a quem tem credibilidade, o ouvinte logo diz: “Não acredito. O fulano nunca foi assim. Mesmo que haja fortes indícios, não creio!” A pessoa que tem credibilidade, tem sempre o benefício da dúvida a seu favor. In dubio pro credibilidade!



Os dois parágrafos anteriores justificam a união ética entre confiança e credibilidade.  Em ambos os casos, a história no tempo da pessoa ou da instituição, induzem às demais pessoas a esperarem uma conduta mais ou menos linear: quem foi “do bem” até hoje, é esperável que amanhã também o seja. Mesmo que as verdades fáticas oscilem, mesmo que as ciências descubram a cada momento coisas novas desmentindo verdades; a crença pessoal na importância da conduta ética dá certa previsibilidade às ações futuras. 

Por consequência, o descompromisso com a reflexão ética, resulta num comportamento errante. Agir de forma egoísta, de acordo com a conveniência do momento, não cria uma história pessoal confiável. Da mesma forma, a instituição pública que age de acordo com os ventos da política eventual não enseja confiança.  Nada nos faz mais moralmente previsíveis do que o repensar contínuo sobre a ética.  Aristóteles, de um lado afirmava, que o bom hábito nos faria propensos a sermos bons. Por outro lado, Kant nos alertava que o que importa é agir de forma que nosso agir possa ser um agir universalizável.



O que os dois filósofos tinham em comum? A preocupação constante com a reflexão sobre o certo e o errado. E fico feliz em saber que a história nos conta que ambos, sempre e sempre, foram virtuosos e previsíveis em seu desejo de serem corretos.



Credibilidade e confiança: irmãos. Penso que apesar da realidade demonstrar fartamente que nos equivocamos amiúde, só seremos dignos da credibilidade e da confiança quando buscarmos ter certeza que procuramos fazer o correto. E não uma vez ou duas. Mas, como disse antes, que a história da nossa vida ou das instituições públicas seja a vontade de fazer o correto... mesmo que não saibamos exatamente o que seja.

domingo, 22 de abril de 2018

Aos colegas do Direito, minha homenagem.


 Sobre a academia, hoplitas e rapinadores.




Gosto muito da imagem do hoplita[1] grego. Forte e pronto para a guerra. Envolto em armadura de couro, protegido por armas pesadas. Eram o tanque de guerra da pré-história das guerras. Temível! Irmanado com seus iguais, se jogava às mais insanas batalhas. Algo colossal.



Quando saímos das academias, sentimo-nos como os hoplitas. Armados com princípios éticos potentes e luzidios recém-desenvolvidos para serem empunhados.  Como os guerreiros gregos, os acadêmicos ao se formarem saem para as grandes batalhas. São inúmeras. Mas a maioria não são colossais. São escaramuças. São rápidas e mortais. O ambiente é móvel e mutável. As batalhas hoje tendem a serem ganhas por ardis e espertezas.  Parece não ser possível a luta leve para guerreiros tão pesados. Blindados. A técnica atual é a da blitzkrieg! [2]



Fora da academia a moralidade nela desenvolvida, pesa. Princípios elaborados para blindar o aprendiz, hoje parecem ser pesos mortos. Fora do ambiente acadêmico, a batalha parece ser para os rápidos.  A esperteza se coloca como vencedora das certezas lineares. Os aprendizes blindados são como vitimas fáceis nas mãos dos emboscadores. Estes armadilham, argumentam rápido demais. Os hoplitas são lentos nas suas armaduras. Aguentam os impactos por algum tempo. Mas a velocidade e as mudanças cada vez mais rápidas não perdoam.  Inúmeros guerreiros caem emboscados.



Num primeiro momento, as táticas se sobrepõem à ética.  A malícia armadilha quem reflete.  O escudo dos princípios da justiça pesa nas mãos. É mais rápida a flecha treda envenenada por argumentos falaciosos. A falácia é mais fatal que os silogismos válidos com premissas verdadeiras!



A academia resiste. Quer combatentes éticos, fortes e coerentes.  Prepara os guerreiros para as grandes lutas. Simula os ambientes possíveis das guerras estrangeiras ao ambiente escolar.  Escudam seus hoplitas.  Forjam espadas éticas duras, inflexíveis.  Delimitam horizontes éticos. As viseiras de couro impedem ao combatente ver opções indignas do bom combate.



Então o guerreiro sai pronto para o embate. Mas tudo é muito diferente. Ele tem armas possantes, mas na maioria das vezes o inimigo é pequeno e rápido.  Belisca e não morde. Envenena mas não dilacera. Então o combatente fica desnorteado. A moralidade parece pesar demais. Os maliciosos são mais rápidos e não tem nada a perder. Não precisam de justificativas nem da justiça.  Agem por cobiça e por instintos.



Mas, por que os hoplitas são lembrados e os demais não?



A história rejeita os emboscadores.  As medalhas são grandes demais para os peitos pequenos. O embuste, a fraude, a rapina rápida e a emboscada são inglórios. Os moralmente pequenos não lutam os grandes confrontos.  As academias produzem grandes guerreiros para espetaculares batalhas. Não querem menos que isso.



Lembro aos inglórios, rápidos e vorazes, que brigam por migalhas e despojos: a história é seletiva por querer heróis de espírito. A história ama os espiritualmente fortes.  Os livros e os louvores pertencem aos hoplitas éticos.   Os ventos que ventam para os heroicos são tempestades para os ratos. Ratos não foram feitos para serem lembrados. Existem apenas para se multiplicarem e desaparecerem.



Os hoplitas vivem para mudar as sociedades. Existem para fazerem história, criarem teorias e novos princípios éticos. As almas desses hoplitas voltam para serem ensinados nas academias. Voltam machucados e heróis. Voltam e são ensinados aos jovens. Agora, servem para blindar os novos guerreiros. A história não pode parar. Ela está à espera de novos guerreiros para forjarem novos tempos. 



Reflitam: rapinadores, ratos, vendilhões e guerrilheiros não sabem nem podem fazer história. 





[1] [1] Hoplita era o soldado de infantaria da Grécia clássica. Seus componentes eram cidadãos treinados para serem soldados. No mundo grego, os Hoplitas eram a melhor infantaria. Dominaram os combates por séculos.

[2] O Blitzkrieg (guerra-relâmpago): Tática militar alemã que consistia em atacar rapidamente, sem chances de revide. Tinha como tática: a surpresa, a velocidade e a força.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

A ética e a ética processual no CPC


Para iniciarmos o artigo, convém a reflexão sobre a ética em geral, ou a ética no sentido filosófico. Ela não é a mesma coisa que a moral.  A moral é o sentimento que temos em relação ao que nos afeta. Na verdade, temos opiniões valorativas sobre tudo.  O peso aqui é dado à expressão opinião. Ou seja, o senso comum parece abranger sob o aspecto do certo e do errado, do bem e do mal, toda a realidade que nos cerca.   Neste nível, apoiamos nossas concepções nas nossas experiências culturais, e nas nossas experiências de prazer e desprazer ao percebermos os acontecimentos diários.  A moral, portanto, não pretende, sequer necessita, de um fundamento racional.

Vários casos de crimes televisionados provocam comoção popular. Pessoas gritam por justiça, justiceiros pululam desejando a punição imediata dos “culpados”. Nada é processual, tudo é imediato, à flor da pele.  Os jornalistas comentam identificando a pessoa “imoral” com o veredito de  culpada. Os que estão em locais de “má reputação” são imediatamente suspeitos, e os defensores dos suspeitos são qualificados como “dos direitos humanos”. Estes últimos são percebidos como defensores dos bandidos, dos maus e da ralé.

Entretanto, basta um pouco de reflexão para percebermos que as conclusões a que o senso comum chega, não têm fundamentos lógicos (são falaciosos), não respeitam a sequencia causa-efeito, muito menos seguem a linearidade mínima para a reflexão plausível. A moral do senso comum salta argumentos, escolhe a faceta que acredita, evita o que não concorda. Faz escolhas específicas de acordo com suas crenças, e então fulmina qualquer esperança de imparcialidade ao dar seu veredito opinativo/definitivo.

Numa mesa em frente a uma taça de café num domingo, argumentando entre amigos,  não há problemas em julgar moralmente  (pois não há consequências no plano fático). É uma pratica culturalmente aceita e é milenar. Até por que, usarmos a razão sempre seria cansativo demais. Provavelmente algo impossível. Termos opinião e sermos livres para expressa-la não é algo ruim. O problema está quando o fazemos em momentos em que podemos ser tomados a sério, podendo provocar consequências negativas para alguém.



Não é possível levarmos uma vida normal sem que estejamos alicerçados em valores e convenções irrefletidas, embasadas na vivência cultural, nos liames afetivos de uma comunidade. A identificação rápida do bem e do mal sob o ponto de vista do senso comum, nos garante uma vida previsível e similar às demais vidas que nos cercam.  Daí vem certa segurança e harmonia que nos permitem viver em sociedade.



Diferentemente, a ética não permite que nos mantenhamos no nível da moral. A ética é a ciência da moral. Com isso, quero dizer que o senso comum passa a ser aferido por uma reflexão minuciosa.  Quando a razão se debruça sobre a opinião, a devoção a determinados valores passam a ser criticados de maneira dura. Nem tudo o que as pessoas creem são válidos para as demais pessoas. Todo o julgamento, no momento da reflexão ética, não é aceito de imediato, mas processualmente no tempo. Terá início, meio e fim.  E cada momento está sujeito a suspeições, interrupções para reflexões e a especiais questionamentos sobre prejuízos e contradições.

Quando nos submetemos à reflexão ética, nossos valores morais, nossos desejos de estarmos certos, serão educados e refinados.  Temos que educar nossa consciência, elevando-a acima das nossas paixões, fazendo-a refletir sobre nossa vontade e, principalmente, refletir sobre os critérios que usamos para julgar o certo e o errado. De certa forma, avaliar o outro é avaliar a nós mesmos, pois são nossos valores que julgam.  O meu julgamento espelha quem eu sou.  De certa forma, nesse contexto, faz sentido dizer que só damos o que temos, ou melhor: só julgamos com o que temos em nós para julgar.

A reflexão ética converge para o que chamamos de confiança. Essa confiança ocorre entre as pessoas e entre as pessoas e o Estado.

Reduzindo a hesitação nas relações sociais, a confiança atua como um mecanismo protetor hábil a evitar o caos e a desordem. Serve para conter a insegurança por meio da filtragem e organização do grandioso volume de informação complexa que recebemos. A confiança de uma pessoa na concretização das suas próprias expectativas é, portanto, um fator elementar da vida social. Ela vai viabilizar as relações sociais por meio de uma estabilidade que é alcançada pela existência de expectativas recíprocas. Com ela, o passado se estende para o futuro e o potencial de modificação inesperada das relações sociais é reduzido, o que torna possível o convívio entre os seres humanos. [1]



A segurança e a estabilidade num estado de direito é fundamental. As pessoas precisam confiar umas nas outras. Ou seja, a história da pessoa X justifica eu confiar que amanhã ela se comportará como sempre se comportou. As mudanças são mínimas e se ocorrem, espera-se que ocorram num intervalo de tempo razoável. Há, eu diria, um processo de transformação processual. Na mudança, podemos identificar razoavelmente os motivos da transformação. Em relação ao Estado (na sua relação com  as pessoas)  a questão é mais complexa. Entretanto, em relação a ele, os cidadãos devem esperar coerência e mudanças na esteira do tempo (nunca algo imotivado e instantâneo).  A previsibilidade e a confiança no Estado são, portanto, essenciais. A reflexão ética é fundamental para mantermos a estabilidade, já que a moral do senso comum não consegue faze-lo.



O filósofo moderno Thomas Hobbes, encontrou uma solução estranhável para nós contemporâneos. Como, segundo Hobbes, somos maus e egoístas, somente nos manteríamos em sociedade e confiaríamos no outro, em função do Leviatã. O Leviatã representa o príncipe, o Estado, com poderes absolutos. O medo, por consequência, faria com que o povo se mantivesse cordato em relação às leis. Ninguém mataria por medo do estado vingar o crime cometido, talvez matando o assassino. Ninguém faria o mal com medo do mal que sobre ele se abateria através da punição estatal. O príncipe pode tudo, convém teme-lo, portanto. Não haveria processos nem direitos. O que haveria é a certeza da punição exemplar e, com certeza, sem o respeito ao princípio da proporcionalidade.



Na verdade, Hobbes não defende propriamente a monarquia absolutista, baseado nas teorias tradicionais do direito divino dos reis, mais sim a ideia de que o poder, para ser eficaz, deve ser exercido de forma absoluta. Este poder absoluto resulta, no entanto, da transferência dos direitos dos indivíduos ao soberano, e é em nome deste contrato que deve ser exercido, e não para a realização da vontade pessoal do soberano. É nesse sentido que Hobbes é um contratualista – a sociedade civil organizada resulta de um pacto entre os indivíduos – sem ser um liberal, já que defende o poder absoluto, poder considerado legítimo enquanto assegura a paz civil.  É a esse soberano dado todo o traço poderoso que Hobbes denomina “Leviatã”, recorrendo a um nome de um monstro bíblico. [2]



A evolução da ciência jurídica, evidentemente, não pode aceitar em nome da paz social, a preponderância do Estado sobre o indivíduo através medo, pela dor e pela independência das decisões do príncipe em relação aos procedimentos legais.  A história dos homens em sociedade, fez com que a justiça do Estado passasse a se materializar no processo racional dos julgamentos. A confiança das pessoas entre si e entre o Estado nas questões de litígio, passam a se basear na ideia de um processo justo, racional e isento.



Podemos perceber que a ética avança sobre as concepções de justiça e, por consequência, sobre os procedimentos durante os julgamentos e sobre os limites das condenações. O processo para ser justo, passa a seguir princípios que o orienta internamente (quando os valores éticos se tornam normas do processo) ou externamente (pelos princípios éticos  constitucionais e internacionais).



O Código de processo civil segue, portanto, princípios éticos.  Um dos pilares valorativos do processo é o dever de boa-fé entre todos os envolvidos. No art 77 do CPC surge a expressão “dever” (de boa-fé), indicando o caráter valorativo. Estes deveres apontam para a necessidade das partes, seus advogados e o Ministério público serem probos e leais (em relação ao processo). Pretende-se com essa valoração conduzir os participantes a agirem segundo a verdade, a fundamentarem de maneira crível suas pretensões, a não produzir provas protelatórias ou inúteis. As partes teriam, portanto, uma credibilidade ética.



Com a expressão boa-fé,  o legislador quer se contrapor aos que conduzem seus procedimentos durante o processo com má intenção, com interpretações deturpadas das leis ou que ajam de maneira antiética.  Não são bem–vindas as atitudes que desarmonizam o ambiente processual. Inclusive podendo o litigante de má-fé, estar impedindo o direito a ampla defesa e ao contraditório da outra parte. O artigo 80 do CPC não deixa dúvidas quanto a esses impedimentos. Nele lê-se:




Considera-se litigante de má-fé aquele que:

 I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

II - alterar a verdade dos fatos;

III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

VI - provocar incidente manifestamente infundado;

VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.




A referência ética que perpassa o CPC enaltece a dignidade humana, inclusive impede o uso de expressões ofensivas. Ora, a cordialidade, o respeito à pessoa e a necessidade de cooperação não coexistem com a violência, mesmo que verbal. O artigo 88 refere in verbs:



É vedada às partes, à seus procuradores, aos juízes, aos membros do ministério público e a qualquer pessoa que participe do processo empregar expressões ofensivas nos escritos apresentados.



Mas, não podemos esquecer que na realidade:


O sistema processual brasileiro é um ambiente no qual prevalecem os interesses não cooperativos de todos os sujeitos processuais. O juiz imerso, na busca por otimização numérica de seus julgados, e as partes (agir estratégico) com a finalidade de obtenção de êxito.  Esta patologia de índole fática não representa minimamente os comandos normativos impostos pelo modelo constitucional de processo, nem mesmo os grandes propósitos que o processo, como garantia, deve ofertar.[3]



O valor que norteia o processo não é mais o do litígio quase beligerante. A imagem de advogados gladiadores, golpeando com suas espadas verbais, não é mais condizente com o ideal ético do CPC.  Mesmo as partes sendo opostas em relação às suas pretensões, e o juiz sendo o mediador estatal poderoso, todos estão juntos sob a égide do “mesmo” judiciário e do mesmo Estado: são eles (judiciário e Estado), queiramos ou não, os que garantem a estabilidade nas relações sociais. Então, quanto mais o espírito for de colaboração, mais a ênfase na harmonização se dá. Mesmo que haja sempre um vitorioso e um não vitorioso, as relações sociais continuam e o judiciário também. Estas afirmações estão expilicitadas no art. 1º do CPC, onde se lê:



Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. 



O respeito do juiz pelos advogados e seus clientes, seu incentivo ao diálogo e a transparência na relação com as partes, é explicitada no artigo 10 do código já citado:



O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.



A tendência  é, sempre, a mitigação dos litígios. Esta intenção fica clara no ideal de autocomposição.  O artigo 190 do CPC nos diz:



Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.



Percebamos que a beligerância, de certa forma, é amenizada pela possibilidade aqui descrita.  A mesma linha de pensamento segue o artigo 3º do mesmo diploma. Acrescento na íntegra o caput do Art. 334 do mesmo código:



Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.



Conclui-se em sequência que os princípios éticos estão fortemente presentes, se irradiando por todo o Código de Processo Civil. Evidentemente que não é por acaso, afinal, a Constituição Federal de 1988 predispõe todo o ordenamento jurídico do país a uma exegese democrática e humana das leis, com apelo pela participação ética de todos. Inclusive, e principalmente, das autoridades que representam o Estado.



[1] Araújo, Valter Shuenquener de. O princípio da proteção da confiança: uma nova forma de tutela do cidadão diante do Estado. RJ. Impetus, 2009. Pág.13.
[2] Marcondes, Danilo. Iniciação à Filosofia: dos pré-socráticos à Wittgeinstein. 8ª edição. RJ, Jorge Zahar. 2004. Pág. 198
[3]  Júnior, Humberto Theodoro – e outros. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. 3ª edição RJ. Editora Forense. 2015. Pág. 87.










Poder e violência. Coisas distintas.