sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Livro: A arte de amar Erich Fromm

 Prof. Amilcar Bernardi



Nascido em 1900, em Frankfurt, Alemanha, Erich Fromm estudou psicologia e sociologia. Doutorou-se em Filosofia em Munique e recebeu sólida formação psicanalítica no Instituto Psicanalítico de Berlim. A partir de 1933, ano da ascensão de Hitler ao poder, passa a exercer o cargo de professor nos EUA, em Chicago, e, posteriormente, a exercer a clínica em Nova York. Foi professor em várias universidades, inclusive no México. E seus livros passaram a se ater em questões humanistas que atraíram a atenção de profissionais de vários campos, como Sociologia, Filosofia e Teologia. De certa forma, muitas de suas ideias foram contemporâneas de várias abordagens humanistas.
Na sua obra A arte de amar, salienta um equívoco importante: uma prova de amor seria não amar a mais ninguém. Esse sentimento é uma atividade da alma; caso ame alguém, amo a todos, amo tudo. “Amo em ti a todos, através de ti amo o mundo, amo-me a mim mesmo em ti”.
O amor erótico é o anseio pela fusão, pela união com outra pessoa. Aqui aparece a exclusividade e não universalidade. Acrescenta que é, provavelmente, a forma mais enganosa de amar. Isso porque confundimos com cair enamorado, algo súbito e avassalador.  Mas esse avassalamento tem tempo curto de vida. A familiaridade com a pessoa faz surgir um sentimento que diz: nada mais há para conhecer na pessoa. Mas se nos déssemos tempo para realmente nos aprofundar na intimidade da pessoa, descobriríamos a impossibilidade de conhece-la totalmente em suas profundezas.  Sem conhece-la totalmente, a cada dia o milagre se renovaria: a pessoa eleita teria sempre coisas novas, maravilhas novas a serem descobertas. O desafio do conhecimento dela seria eterno. De outra forma, a pessoa seria explorada à exaustão. Exaurida perderia o brilho e valor. Tornar-se íntimo não é somente atingido pelo sexo, ou pela fala diária sobre “o que temos em comum”; nem mostrarmos nossas frustrações e magoas sendo sinceros ao máximo. Nem a complexa desinibição com relação ao companheiro (a) é intimidade. Esse tipo de proximidade torna-se rotineira e morre.
O amor erótico contrasta com o amor fraternal e o amor materno. O amor erótico consiste na união com uma só pessoa, diferente dos demais amores, que não estão restritos a uma única pessoa. O amor pode inspirar desejo sexual, mas mistura-se a ternura, essa ternura é produto do amor fraterno que está em nós. Fromm diz isso por que uma das características do amor erótico é a exclusividade, a exclusão do resto da humanidade. Mas o casal que ama é também humanidade, então há um sentimento de separação entre o casal, e entre o casal e o resto das pessoas. Para corrigir essa distorção, a pessoa que ama, ama na outra toda a humanidade, tudo que vive.  Entregamo-nos profundamente a uma única pessoa, mas não nos fechamos ao amor fraterno que vive em nós. 
O problema na reflexão de Fromm é que se amamos fraternamente, e em essência somos todos iguais, somos todos um. Não fará diferença quem amemos.  Ele resolve dizendo que amar é um ato de vontade, de decisão a quem vou entregar-me. Existe um aspecto racional por trás da indissolubilidade do matrimônio (em suas diversas formas). Amar alguém não é só sentimento, mas decisão, um julgamento, uma promessa. Isso seria a morte do amor e a vitória da racionalidade fria? Não, pois como Fromm diz, amamos a humanidade fraternalmente, escolhemos uma pessoa porque apesar de sermos um, somos pessoas diferentes, irrepetíveis. Essa especificidade nos faz sermos escolhidos.
Para Erich Fromm o amor consiste na compreensão de que ele não é uma situação acidental em que nele se “tropeça”. Na verdade, é algo que, na qualidade de arte, exige conhecimento e esforço.
Quanto ao amor próprio Fromm, traz importantes informações. Alegar que amar a si é inversamente proporcional a amar o próximo, não é bem verdade. Amar o próximo é louvável. Eu e o outro somos humanos; então amar outra pessoa é amar a mim mesmo! Por outro lado, amar a mim mesmo me torna apto a amar o outro. É impossível, segundo Fromm, amar só o outro. Quem não ama a si também, não pode amar ninguém.
A pessoa egoísta só se interessa por si mesma, não sente prazer em compartilhar, só quer tomar do outro.  O mundo é visto como algo a ser dominado e dele subtraído tudo.  O egoísta não pode ver senão a si mesmo, julga tudo por si mesmo. É, portanto, incapaz de amar.  Importante: para Fromm a pessoa egoísta não ama demais a si mesma, ao contrário ama de menos: odeia-se. Furta da vida o que por si mesmo não consegue atingir. Quer encobrir o fracasso em cuidar de si mesma.
Fromm diz que o amor é uma atitude, uma orientação de caráter.  Não há, a priori, um objeto de amor, mas uma visão amorosa com relação ao mundo. Pois se amo uma única pessoa, excluo o resto da humanidade. Aqui meu afeto torna-se simbiótico ou um egoísmo ampliado.
A sociedade capitalista se funda na ideia de um mercado o mais livre possível.  O mercado é regulado pela utilidade das coisas. Nele tudo é transformado em artigo de compra e venda, desde as coisas mortas até a energia e capacidade de trabalho. Fromm afirma: “O capital comanda o trabalho; as coisas acumuladas, que são mortas, têm valor superior ao trabalho, às forças humanas, àquilo que é vivo”. Ele alerta que o capitalismo tem necessidade de pessoas que cooperem sem atrito. É importante que consumam muito e de forma padronizada. No capitalismo o homem experimenta suas forças de vida como um investimento que deve produzir o máximo de lucro possível. Estamos tão alienados que mesmo buscando nos aproximarmos dos outros, não conseguimos superar a separação.  Então a civilização moderna/capitalista nos oferece soluções de curto prazo, fáceis e instantâneas: o trabalho rotinizado e burocratizado, a diversão acrítica e o consumo compulsivo patrocinado pela mega indústria da diversão. Mas isso não diminui a separação entre as pessoas!  E como fica o amor nesse ambiente?  Estamos impossibilitados de amar: “Autômatos não podem amar; podem trocar seus fardos de personalidade e esperar um bom negócio”.  O casamento passa a ser uma equipe de dois destinada a auferir lucros. Um ajuda o outro a ter sucesso no mundo capitalista.  “Forma-se uma aliança de dois contra o mundo, e esse egoísmo a dois é enganosamente tomado por amor e intimidade”.

O amor é uma arte. E só aprendemos uma arte praticando-a: não há uma receita. A experiência de amar é pessoal e intransferível. E para dominar uma arte é necessário disciplina e concentração. Concentração é algo muito difícil de conseguir em nossa cultura. Somos multifuncionais, multiuso, fazemos tudo ao mesmo tempo. O tempo tem pressa. Somos incapazes de ficarmos sós, em companhia de nós mesmos.  “Sentar-se quieto, sem falar, fumar, ler, beber, é impossível para a maioria das pessoas, precisam fazer alguma coisa com a boca ou as mãos”. Temos que aprender a ficarmos sós conosco mesmos, pois é essa capacidade uma das condições da capacidade de amar. Aprender a concentrar-se exige do aprendiz que evite a conversação trivial.  Falar das coisas de maneira abstraída não é concentrar-se, falar de lugares comuns, falar do que o coração não sente não é ficar atento.  Deve-se inclusive evitar as más companhias. “Por más companhias não me refiro apenas a pessoas que sejam viciadas e destruidoras; deve-se evitar a companhia destas por que sua órbita é venenosa e deprimente. Falo também da companhia dos zumbis, da gente que tem a alma morta, embora seu corpo esteja vivo; daqueles cujos pensamentos e conversas são triviais; que tagarelam em vez de falar e que emitem opiniões estereotipadas em vez de pensar”.
Outro fator é a falta de paciência. Queremos andar rápidos, mas a rapidez é má professora de uma arte.  “O homem moderno pensa que perde alguma coisa – o tempo – quando não faz as coisas rapidamente; todavia, ele não sabe o que fazer com o temo que ganha – a não ser matá-lo”. Aristóteles dizia que obtemos as virtudes através do hábito. Semelhantemente Fromm diz que se alguém quer tornar-se um mestre em alguma arte, devote a vida inteira a ela.  “Com relação à arte de amar, isto significa que quem aspire a tornar-se mestre nessa arte deve começar por praticar a disciplina, a concentração e a paciência, em todas as fases de sua vida”.
Mas, afinal, qual é a principal condição para eu realizar minha capacidade de amar? A superação do narcisismo. Para o narcisista só é real o que existe dentro de si mesmo. O que é exterior só visto sob o ponto de vista do útil e do perigoso. A pessoa insana toma como verdadeiro só aquilo que vai na sua cabeça, como num sonho eterno.  Todos nós somos meio insanos, somos atingidos por uma visão narcísica do mundo.  Nas palavras de Fromm: “A faculdade de pensar objetivamente é a razão; a atitude emocional por trás da razão é da humildade. Ser objetivo, usar a razão, só é possível quando se consegue uma atitude de humildade, quando se emerge dos sonhos de onisciência e onipotência que se tem quando criança”. Por isso o amor requer uma certa renúncia ao narcisismo, requer o desenvolvimento da humildade, da objetividade da razão. Humildade e objetividade são inseparáveis.  Preciso ver a pessoa que vou amar como ela realmente é, renunciar a quadro que pinto dela com as cores do meu desejo. A pessoa pode fazer parte do meu projeto pessoal, mas não é o meu projeto pessoal.
Não podemos deixar de salientar que Fromm diz: a fé em si mesmo é condição fundamental para o amor. Essa ”fé” é racional, uma convicção fundamentada na minha própria experiência ou sentimento. É a certeza e a firmeza que nossas convicções possuem, isso de forma argumentada, defensável e objetiva. Ter fé em mim abre espaço em meu psiquismo para ter fé no outro, para dota-lo da capacidade de eu amá-lo. “Ter fé requer coragem, a capacidade de correr um risco, a disposição de aceitar mesmo a dor e a decepção”. Quem tiver pouca fé em si, ou pouca fé no noutro, não pode amar em plenitude.


Em resumo: o homem moderno transformou-se em artigo, em coisa; experimenta sua energia vital como um investimento com que pode alcançar o mais alto lucro, considerando sua situação no mercado de personalidades. Alienou-se de si, dos semelhantes e da natureza. Seu objeto principal é a troca proveitosa de suas capacidades, conhecimentos e de si mesmo, de seu “fardo de personalidade” com outros que querem igualmente uma troca justa e proveitosa. A vida não tem meta, exceto de movimentar-se, nem princípio a não ser a de boa troca, nem satisfação que não seja a de consumir. (Revista pensamento biocêntrico. Página 36. http://www.pensamentobiocentrico.com.br/content/edicoes/14full.pdf)


domingo, 20 de setembro de 2015

DESAFIO NO BRONX; uma perspectiva maquiaveliana.

Prof. Amilcar Bernardi

Maquiavel propõe questões que tratam sobre como conquistar Estados e como conserva-
los. Sabia ele que a estratégia política trabalha com a fortuna fazendo com que os mais determinados e habilidosos controlasse a história. A iniciativa política deve ajustar-se às circunstâncias. O necessário é manter-se à frente dos acontecimentos, procurando imprimir-lhes rumo e alternativas mais propícias ao príncipe.
Para ele o povo é uma matéria que aguarda sua forma e a engenharia da ordem parte da análise da situação social, não resultando do arbítrio do fundador de Estados, mas de sua capacidade de captar, num momento de gênio, aquela forma desejável e de sua disposição para impô-la sem qualquer vacilação. Em suma, bom príncipe é aquele que tem a capacidade de perceber o jogo de forças que caracteriza a política para agir com energia a fim de conquistar e manter o poder. Sua reflexão é realista.
Maquiavel sabia que a política não pode ser algo ideal, mas algo que seja realizável entre homens comuns. O que é deve orientar o político bem mais do que deveria ser.
O filme DESAFIO NO BRONX pode ser lido sob a perspectiva maquiaveliana. O que vimos na tela foi um jogo forças. Alguns queriam dominar, outros apenas sobreviver, ainda outros precisavam manter o poder já estabelecido. Eram aparentemente interesses diferentes. Aparentemente porque era o mesmo: o domínio. Evidentemente que, sendo o mesmo interesse, eram irreconciliáveis.
Como qualquer Estado moderno (discutido por Maquiavel) as fronteiras entre bairros eram fixas. Cada bairro tinha seu comando, seus asseclas, amigos e inimigos; inclusive normas internas bem estabelecidas. Por exemplo: bairro de branco não tem negros e vice-versa. A vigilância é forte porque as pessoas acreditam naqueles valores. Tais valores são encarnados pelos comandantes dos bairros.  Para manter o status quo os “cidadãos” de cada bairro defendem seus espaços arriscando-se na medida do possível, não mais que isso. Quando a polícia, mais forte que cada comunidade isoladamente, aparece, há uma espécie de cessar fogo para que as forças se mantenham ativas para outros embates.
O bairro dos brancos, mais evidenciado, tem seu chefe. Mais velho e mais astuto. Leitor de Maquiavel entende os princípios do escritor italiano.  Para manter seu domínio, na maioria das vezes tenta ser amado. Quando não consegue usa da violência na medida certa. Não extrapola. Chama atenção na medida do medo que quer produzir. Está sendo fiel ao princípio do Príncipe quando diz que os homens têm menos escrúpulo de ofender o que se faz amar do que se faz temer.
O chefe sabe que não pode confiar em ninguém, sabe que seu bairro é feito de homens, e homens são ingratos e simuladores. Então também usa de artifícios e artimanhas para controlar as pessoas sob seu domínio.
O menino, filho do motorista do ônibus, admira tal figura esperta. Quer ser seguidor. Não aponta o responsável pelo assassinato que vira. O comandante sente-se em dívida com seu comandado. Estende sua proteção em troca de fidelidade.  O pacto é feito. Tal contrato é tão forte que tudo que o pai faz para afastar o filho de tal influência é inútil. O poder que o jovem passa a ter o corrompe fazendo dele dependente de seu protetor. E é assim que deve ser: a figura de protetor mantém as pessoas dependentes e esperançosas de poder partilhar um pouco do poder.
A dependência, a troca de favores entre quem comanda e quem é comandado é tão forte que quando o chefe morre, o poder é transferido para outra pessoa do mesmo estilo. O medo da violência da mudança deixa tudo como está. Não só o poder foi tomado quanto foi mantido. O jogo criado naquele bairro teve força suficiente para sobreviver ao seu criador.

O interessante é que houve pouca violência. Este era usado como último instrumento para manutenção do sistema montado. O jovem aprendiz de gangster era frequentemente advertido para agir com astúcia. A astúcia valia mais que a força. Sequer a polícia conseguiu prender alguém dos poderosos e descumpridores da lei.  A astúcia venceu sempre. Ninguém queria o mal de ninguém. Queriam apenas a manutenção dos privilégios. Não sentiam culpa em suas almas. Eram políticos que sabiam o que queriam.

sábado, 12 de setembro de 2015

Jogos de linguagem em Wittgenstein


Jogos de linguagem em Wittgenstein[1]


Neste estudo falaremos apenas da segunda fase de Wittgenstein, pois entendemos como mais relevante para o ensino médio as questões apresentadas nas investigações filosóficas.  Nesta fase passou a afirmar que é impossível uma redução legítima entre um conceito lógico (da linguagem) e um conceito empírico (realidade). Em outras palavras, a linguagem não é a captura conceitual da realidade, isto é, não é a reprodução do objeto, mas sim uma atividade, um jogo. E os jogos de linguagem adquirem seu significado no uso social, nos diferentes modos de ser e de viver no qual a linguagem está inserida. Estes jogos, portanto, são produzidos socialmente e não individualmente. “A linguagem é como uma caixa de ferramentas”.  Ela não é falsa ou verdadeira, mas se sabemos ou não a usar.  A tarefa da filosofia é usar adequadamente a linguagem, sabendo dos seus limites e calando-se diante do que não pode ser falado.
Na a obra Investigações Filosóficas o filósofo fala em semelhanças entre jogos de linguagem. Esse pensar dá mais vitalidade a linguagem, pois exercitamos tais jogos na vida cotidiana adaptados a cada circunstância: trabalho, lazer, disputas filosóficas e etc. O que há em cada situação é apenas uma “semelhança” de família. Assim pensando Wittgenstein, nas investigações, conclui que o sentido da palavra é o seu uso e o papel da filosofia é esclarecer o uso de cada uma das palavras em cada jogo de linguagem. 
A linguagem para este filósofo é baseada no habitual, no cotidiano.    Wittgenstein diz que há várias maneiras de representar os fatos, existem muitas linguagens semelhantes a jogos governados por regras próprias, inerentes a um dado contexto, cada jogo. Pertence a uma certa forma de vida onde tira seu sentido. Esse sentido se dá no uso que se faz da linguagem. Uso contido no cotidiano, nos modos comuns de falar ou nas linguagens específicas de artesãos e dos técnicos, e que não necessita de esclarecimentos. O fim de um determinado jogo é definido pela forma de vida em que se insere esse jogo. O proferimento humano é responsável por um padrão de correção. Tal padrão é um artefato humano. Isso não quer dizer que um indivíduo pode decidir por si mesmo o que é certo e o que é errado na arte da comunicação. Estamos vinculados à concepção que fazemos de nós mesmos como seres que observam um mundo independente e nele agem.  Se nos opomos a verdades que nos parecem necessárias, tal se dá apenas porque fomos nós que criamos as regras que as fazem ser assim; e   também podemos abrir mão daquilo que criamos.
Fica mais evidente a existência de jogos quando ensinamos uma criança. Dizemos, “Isto é um giz”.  Ela entende. Mas de repente ela nos pergunta, “O que é isto? Como mostrar a palavra isto? Patenteia-se que o significado de isto ou ali se aprende no seu uso mesmo e não tanto no aprender do uso. As palavras só se tornam claras no seu uso comum num determinado jogo de linguagem. A palavra explica-se no contexto em que for usada. Representar uma linguagem significa representar-se uma forma de vida. Essa referência à vida nos faz lembrar movimento, associações e variações. Assim é nossa linguagem.
As palavras explicitam-se quando nos inteiramos do jogo em que elas fazem parte. A frase do chefe ao funcionário: “Tu podes fazer isso para mim? ” Para o funcionário significará, apesar de ser uma pergunta, uma ordem na práxis da linguagem do escritório. Mas esse mesmo funcionário, ouvindo a mesma frase, mas proferida por um amigo, a entenderá de forma diferente. Uma expressão dita a um estranho, por exemplo, “Ë legal! ”, será ambígua. Poderá significar um fato juridicamente válido ou uma gíria com sentido bem diverso. Para reduzir a ambiguidade, torna-se necessário que convivam algum tempo no mesmo jogo.
Fica então evidente, que simplesmente denominar não faz uma linguagem. Quando apontamos à uma criança muito nova uma mulher e dizemos ”mãe”, a criança entenderá imediatamente que todos têm mãe? Que nem todas as moças são mães?  Que a mesma mulher que é mãe, também é tia, irmã, esposa, empregada? E quando ouvir a expressão “mãe pátria? ” Entenderá ela que a palavra mãe ocupa vários “lugares” nos vários jogos de linguagem?
A linguagem funciona em seu uso. Não nos cabe indagar sobre os significados das palavras, mas sobre suas funções práticas. Essas funções se exercem na vida. Isoladas de todos os contextos, a expressão não deve ser transformada em objeto de ponderações profundas sobre sua essência. Devemos considerar toas as espécies de contexto em que ela pode aparecer, só assim a elucidaremos.
Segundo o autor a linguagem engendra, ela mesma, suas superstições. A filosofia tem como tarefa esclarecer e neutralizar os efeitos enfeitiçadores da linguagem. O problema encontra-se no ímpeto em perguntar sobre a essência da linguagem. Devemos voltar nossa atenção a estudos sobre o funcionamento da linguagem.  Os usos múltiplos e variados, constituem múltiplas linguagens. Ela é um conjunto de jogos. Esses jogos são como ferramentas usadas para esclarecer o que queremos expressar. 





[1] Bibliografia:
Abbagnano, Nicola. A sabedoria da filosofia, Rio de Janeiro, Vozes, 1989.
Cotrim, Gilberto. Fundamentos da Filosofia. 15a edição. São Paulo. Editora Saraiva. 2000.
Doria, Francisco Antônio. Marcus vida e obra, Rio de Janeiro, José Álvaro editor, 1969.
Stegmüler, Wolfgang. A filosofia contemporânea, 6a edição, São Paulo, USP, 1977.
Wittgenstein, Ludwig. Investigações Filosóficas, 3a edição. São Paulo. Abril Cultural, 1984.

sábado, 23 de maio de 2015

Rerum Novarum

Encíclica Rerum Novarum

A encíclica é um documento feito pelo papa dirigido aos religiosos e aos fiéis. De maneira geral tem cunho de fé, mas também pode se referir ao mundo, aos problemas sociais e econômicos. O Papa Leão XIII utilizou-se da Rerum Novarum para orientar o mundo cristão num momento de grande sofrimento dos trabalhadores e trabalhadoras. O contexto era o da Revolução Industrial, do liberalismo clássico e das péssimas condições de trabalho e dos baixos salários. O pensamento de Karl Marx era já bastante conhecido pelas classes mais esclarecidas.
O Papa manifestou-se, pois, o contexto social assim o exigia. Leão XIII reconhece que as pessoas que trabalham estão numa miséria imerecida, entregues a cobiça. Entretanto, defende a propriedade privada e reage contra o comunismo. A riqueza e seu acúmulo em excesso, assim como o comunismo e o socialismo, corrompem a alma e o corpo.  O corpo é exaurido pelas horas extenuantes de trabalho, e alma corrompida pelo afrouxamento dos costumes, pelo abando das mães trabalhadoras a seus filhos. O comunismo também corrompe a alma insuflando o ódio e a inveja nos pobres, segundo o Papa.
A propriedade, segundo Leão XII, estava já prevista por Deus na Bíblia: Não cobiçarás a mulher do teu próximo. Não desejarás para ti a casa do teu próximo, nem o seu campo, nem o seu servo ou serva, nem seu boi, nem seu jumento, nem bem algum que pertença a teu próximo”.
Apesar dessa defesa da propriedade, a Igreja não pode deixar de ver a dolorosa realidade social.  A encíclica afirma que somente o evangelho pode suavizar o conflito. Não é possível aceitar a ideia da luta de classes, mas a concórdia entre elas.  A diferença social é natural, mas o conflito não.  Adverte a  Rerum Novarum que a desigualdade social deve ser algo que venha a favor de todos.  As classes ao unirem-se, como fazem os organismos complexos, proporcionarão o avanço social, a sinergia entre as classes. A classe trabalhadora não deve lesar o patrão e deve ser fiel a ele. Por outro lado, os patrões não podem ver o trabalhador como escravo, inumano, como coisa, como instrumento do lucro. O patrão deve cuidar do pobre para que este viva modestamente, mas com dignidade junto com sua família. Com isso o empregador ajuda ao seu subordinado cuidar das coisas da alma, pois terá o subalterno menos tempo de trabalho e o salário será o suficiente para a esposa cuidar da família.
Ser rico não é pecado, mas o cuidado com a esmola impõe-se. Jesus era o rico supremo e fez-se pobre. O rico deve controlar seus impulsos ao enriquecimento e aos prazeres. Para isso o estado é necessário. Leão XIII opõe-se ao liberalismo. Afirma que o estado tem que propiciar com suas leis a prosperidade pública e o progresso da indústria, do comércio e da agricultura.  O governo observará a sorte do operário e a proteção à sua dignidade. Pobres e ricos são cidadãos. O trabalho deve assegurar habitação, vestuário e que as pessoas possam viver através dele. A riqueza do rico vem do trabalho. O trabalho do pobre vem da riqueza.  O trabalho é a fonte da riqueza das nações. Portanto, uma classe nunca poderá oprimir outra. O estado cuidará da harmonia entre elas.  A lei estatal reprimirá os abusos preocupando-se primeiramente dos fracos.
A greve é desarmonia. A desordem impede o desenvolvimento. É preciso antecipar os motivos. Identificar a causa e saná-la com sabedoria. O papel dos sindicatos e das corporações são muito importantes, úteis e necessários. Não é possível a luta de classes. Por isso o estado deverá dar as garantias mínimas ao trabalhador.
A Rerum Novarum produziu uma corrente favorável às políticas sociais ao incentivar as organizações dos trabalhadores e ao chamar a atenção do estado sobre as condições dos trabalhadores. Aproximou a ordem econômica da moral cristã. O cristianismo reconhece a má distribuição do poder e das riquezas. Portanto, apregoa a encíclica que o salário seja digno e que todos possam encontrar trabalho. O trabalho é mais que o lucro que traz, é a dignidade do trabalhador.


quinta-feira, 21 de maio de 2015

Platão



Platão é uma das maiores figuras de todos os tempos na filosofia. A extraordinária envergadura do gênio filosófico de Platão está em ter tirado a especulação filosófica das incertezas e da ingenuidade dos inícios e, tê-la levado a uma profundidade, maturidade e amplitude assombrosos.
Ele nasceu em Atenas, 427 ªC. Seus pais foram Aristão e Perizona, ambos descendentes das mais nobres famílias da Grécia. Depois de ter recebido uma esmerada educação, seu primeiro contato com a cultura deu-se no terreno da pintura e da poesia. Mas bem depressa começou o estudo da filosofia, frequentando a escola de Crátilo, longínquo discípulo de Heráclito.
Enquanto Platão ouvia as lições de Crátilo já começara a frequentar a escola de Sócrates. Essa foi a maior influência na formação da personalidade de Platão.
Após a condenação de Sócrates, Platão, temendo represálias, deixou Atenas com destino a Mégara. De lá iniciou uma série de viagens, visitando cidades da Grécia e da Itália. Quando voltou a Atenas, fundou sua Academia. É a primeira universidade, onde estava previsto o estudo da matemática e geometria. Forneceu a Grécia uma série de grandes matemáticos e espíritos organizadores e imprimiu a matemática e à geometria um enorme desenvolvimento.

A teoria platônica das ideias:

Platão parece ter-se considerado em condições de resolver todos os problemas filosóficos. Procurava verdadeira causa de tudo. Para encontra-la julgou que devia refugiar-se nas idéias e considerar nelas a realidade das coisas existentes. Para Platão uma coisa é bela porque participa da beleza. Só é verdadeira porque participa da verdade. Esta é a causa do mundo sensível: a sua participação no mundo intelectual. Isto significa que, existindo um mundo sensível, deve existir também o mundo inteligível. Existem bancos porque existe à parte, separado, subsistente, o banco.  Só existem os homens porque existe o homem.
Vê-se assim que, segundo Platão, existem dois mundos, o inteligível e o sensível, e que o primeiro é a causa do segundo.
Para demonstrar a existência do mundo inteligível (mundo das ideias), Platão aduz três argumentos:
Argumento da reminiscência: temos a ideia de verdade, de bondade, de igualdade, a ideia universal de homem, etc. Essas idéias nós não as tiramos da experiência, logo o conhecimento atual é a recordação de uma intuição que se deu em outra vida.

Reminiscência: Segundo Platão, lembrança do que a alma contemplou em uma vida anterior, quando, ao lado dos deuses, tinha a visão direta das idéias; anamnese. 

Argumento do verdadeiro conhecimento: Não existe ciência a não ser do verdadeiro; ora, a verdade exige correspondência entre o conhecimento e a realidade, mas o único conhecimento humano que merece o nome de ciência é o que diz respeito aos conceitos universais. Logo, deve existir um mundo inteligível, universal.
Argumento da contingência: deve existir a ideia necessária e estática para que se explique o nascer e o parecer das coisas: uma coisa é bela não por certa combinação de cores, mas porque é uma aparição terrena do Belo em si; o dois é dois não pela adição de duas unidades, mas pela participação na Dualidade.

As idéias são sempre descritas como realidades simples, incorpóreas, imateriais, não sensíveis, incorruptíveis, eternas, divinas, imutáveis, auto-suficientes, transcendentes. Uma questão de difícil solução para os estudiosos de Platão, é o lugar de Deus no mundo inteligível. Platão acredita nos deuses, mas também na existência de um Ser supremo (Demiurgo), criador e pai do universo, artífice de todas a sorte de objetos. Para o filósofo das idéias, Deus é uma das idéias soberanas.  Para Platão Deus constitui um grande mistério. Ele diz que é difícil encontrar o Autor e Pai do Universo, e, uma vez encontrado, é muito difícil falar nele.
Platão afirma que no princípio existiam, além das idéias (os modelos a reproduzir), o caos (uma matéria informe a plasmar) e o Demiurgo (o artífice soberano). O Demiurgo, observando as idéias, plasma a matéria informe e assim produz o mundo material. Terminada a tarefa, o Demiurgo infunde no mundo material uma alma universal, a fim de conservar a vida do mundo, sem uma contínua intervenção do Demiurgo.

O pensamento político de Platão: [1]

No livro VII de A República, Platão ilustra o seu pensamento como o famoso muito da caverna.   Vamos observar a questão política. As questões que então aparecem são as seguintes: como influenciar os homens que não vêem? Cabe ao sábio ensinar e dirigir. Trata-se da necessidade da ação política, da transformação dos homens e da sociedade, desde que essa ação seja dirigida pelo modelo ideal contemplado.
Platão imagina uma cidade, Callipolis (cidade bela). É uma cidade utópica. É uma cidade que não existe, mas que deve ser modelo.
Partindo do princípio que as pessoas são diferentes e por isso devem ocupar lugares e funções diferentes na sociedade, Platão diz que o Estado, e não a família, deve se ocupar da educação das crianças. Aqui quer uma forma de comunismo em que são eliminadas a propriedade e a família, a fim de evitar a cobiça e os interesses decorrentes dos laços afetivos, além da degenerescência das ligações inadequadas.  O Estado orientaria as formas de eugenia (ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento genético da espécie humana), criaria creches para a educação coletiva das crianças.
A educação estatal deve ser igual para todos até os 20 anos, quando dar-se-ia o primeiro corte identificando as pessoas que, por possuírem alma de bronze, têm a sensibilidade grosseira e por isso devem se dedicar à agricultura, ao artesanato e ao comércio. Dedicariam-se a subsistência da cidade.
Os outros continuariam os estudos por mais 10 anos, até o segundo corte. Aí seriam identificadas as almas de prata, que teriam a virtude da coragem essencial aos guerreiros.  Constituiriam a guarda do estado, seriam os soldados.
Os mais notáveis, que sobrariam desses cortes, teriam a alma de ouro. Seriam instruídos na arte de pensar a dois, ou seja, na arte de dialogar. Estudariam filosofia, que eleva a alma a ter o conhecimento mais puro.
Aos 50 anos, aqueles que passassem com sucesso pela série de provas estariam aptos a serem admitidos no corpo supremo dos magistrados. Estes governariam a cidade, exerceriam o poder, pois apenas eles teriam a ciência da política.  Por serem os mais sábios, também seriam os mais justos, uma vez que justo é aquele que conhece a justiça. E esta é a principal virtude, condição das demais. Só poderá ser chefe quem conhece a ciência política. Por isso a democracia é inadequada, pois desconhece que a igualdade deve se dar apenas na repartição dos bens, mas nunca no igual direito ao poder.  É preciso que os filósofos se tornem reis, ou que os reis se tornem filósofos.

A ética platônica:

Toda a filosofia de Platão tem uma orientação ética. Ela ensina o homem a desprezar os prazeres, as riquezas e as honras, a renunciar aos bens do corpo e deste mundo e a praticar a virtude. Afinal, no mundo sensível a alma é prisioneira do corpo, é peregrina à procura de um bem superior que perdeu. O homem está na terra de passagem. A alma será julgada de acordo como justiça e a injustiça que cometeu, será julgada em função da temperança e da intemperança, da virtude e do vício. Para ser feliz é necessário dedicar-se a prática da virtude. A virtude consiste no conhecimento, ao passo que o mal consiste na ignorância. A virtude é uma só: o conhecimento da verdade.
Então a realização da natureza humana [2] não consiste em uma disciplina racional da sensibilidade. Mas na supressão da sensibilidade, na separação da alma do corpo. Agir moralmente é agir racionalmente, e agir racionalmente é filosofar, e filosofar é suprimir o sensível, morrer aos sentidos, ao corpo, ao mundo, viver para o espírito, o inteligível, a ideia. Visto que a alma humana racional se acha, de fato, neste mundo, unida ao corpo e aos sentidos, deve principiar a sua vida moral sujeitando o corpo ao espírito, para impedir que o primeiro seja obstáculo para o segundo. Para que se realize a sabedoria, a contemplação, a filosofia, é necessário que a alma racional domine, daí a virtude da temperança (moderação).


O mito da caverna:


Um grupo de pessoas vive acorrentado numa caverna desde que nasceu, de costas para a entrada. Elas vêem refletida na parede da caverna as sombras do mundo real. Elas acham que as sombras são tudo o que existe. Um dos habitantes se livra das amarras. Fora da caverna, primeiro ele se acostuma com a luz, depois vê a beleza e a vastidão do mundo, com suas cores e contornos. Ao voltar para a caverna para libertar seus companheiros, acaba sendo assassinado, pois não acreditam nele.
O mito da caverna [3] é uma alegoria a respeito das duas principais formas de conhecimento: o mundo sensível, dos fenômenos e o mundo inteligível, das idéias.    Se escapasse da caverna [4] e alcançasse o mundo luminoso da realidade, ficaria livre da ilusão. Mas, estando acostumado às sombras, às ilusões, teria de habituar os olhos à visão do real: primeiro olharia as estrelas da noite, depois as imagens das coisas refletidas nas águas tranquilas, até que pudesse encarar diretamente o sol e enxergar a fonte de toda a luminosidade.





[1] Aranha, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo. Editora Moderna. 1993.


[2] Padovani, Humberto. História da Filosofia. 7a edição. São Paulo, Edições melhoramentos. 1967.
[3] Aranha, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à filosofia.. 2a edição. São Paulo. Editora Moderna, 1993.
[4] Cotrin, Gilberto. Fundamentos da Filosofia: ser, saber e fazer. São Paulo. Editora Saraiva. 1997.

Sócrates

SÓCRATES

 
Para os Cristãos, Cristo é um divisor de águas. Existe a história antes de Cristo e a depois de Cristo. Para a filosofia ocidental, temos os pré-socráticos e os pós-socráticos.
             Também Sócrates é um divisor nas águas revoltas da história da filosofia.  Com esse            pensador a preocupação grega passa a ser a ética e a política e não mais a natureza, como nos pré-  socráticos.
Sócrates argumentava de maneira forte contra os que acreditavam saber algo. Acaba confrontando com o Estado, pois sua ironia colidia contra as práticas dos políticos da época. Acaba por ser condenado à morte. A acusação: desrespeitar os deuses e corromper a juventude. Na verdade o que havia contra Sócrates era seu cruel questionamento dos valores da época. Manda-lo à morte foi imortaliza-lo, pois seu desaparecimento naquelas circunstâncias marcou seus contemporâneos. Quando estava em frente aos 501 cidadãos do júri, ironiza os acusadores e pouco se defende. O júri então o condena a morrer bebendo cicuta.
Esse brilhante pensador optou por manter diálogos com as pessoas. Dialogava com qualquer um em qualquer lugar. O ponto alto desses diálogos era a refutação. As afirmações dos interlocutores eram desqualificadas por Sócrates. O Filósofo levava as pessoas a se contradizerem. A dificuldade está em que Sócrates não escreveu tais diálogos. Ele valorizava mais a fala viva do que a letra morta.  Seu principal discípulo, Platão, registrou seus ensinamentos. Isso trará outro problema: estamos estudando Sócrates ou Platão?
Platão nos mostra Sócrates nas praças de Atenas ironizando e questionando as pessoas. Esse questionamento era cruel, muitas vezes acontecia de forma grosseira.  Iniciava suas questões muitas vezes pela definição: “O que é isso que falas?” As idéias e as virtudes deveriam ser definidas com exatidão. Descobriu Sócrates que as pessoas não sabiam do que falavam! Ele faz uma espécie de análise de conceitos em seus diálogos.


Os sofistas também agiam semelhantemente ao Sócrates, porém, intencionavam diretamente preparar uma elite, futuros governantes. Para isso ensinavam de maneira enciclopédica e com ênfase na eloquência.



Polemarco e Sócrates discutem a justiça. A República


-                 Ora muito bem: para proveito e obtenção de que dirás que é útil a justiça em tempo de paz?
-                 Para os contratos, Sócrates!
-                 Por contrato entendes sociedades, ou que outra coisa?
-                 Sociedades, precisamente.
-                 Quem é o melhor parceiro num jogo de damas: o homem justo ou o bom jogador? E para a colocação de tijolos e pedras, o homem justo será melhor sócio do que o pedreiro?
-                 Bem ao contrário.
-                 Então em que espécie de sociedade o homem justo é melhor sócio do que o citarista, uma vez que para tocar cítara este é melhor sócio que o homem justo?
-                 Creio que em assuntos de dinheiro.
-                 Com exceção, talvez, ó Polemarco, do uso do dinheiro quando se trata de comprar ou vender um cavalo, pois nesse caso penso que será preferível um homem entendido em cavalos. Não é assim?
-                 Sim, parece.
-                 E quando queres comprar um navio, o armador ou o piloto será melhor?
-                 É verdade.
-                 Então, qual é o uso em comum da prata ou do ouro em que o homem justo deve ser preferido?
-                 Quando se quer que um depósito seja bem guardado.
-                 Queres dizer: quando não precisamos do dinheiro e convém deixa-lo quieto?
-                 Precisamente.
-                 Portanto, a justiça é útil quando o dinheiro é inútil?
-                 É o que se conclui.

Sócrates nas suas indagações quer se afastar do senso comum e aproximar-se dos conceitos mais precisos e ricos. Podemos dizer que ele parte do que já sabemos (senso comum) para um conhecimento mais elaborado. Essa busca pelo conhecimento mais elaborado é pessoal, ninguém pode fazer pela pessoa. Por isso esse filósofo perguntava sempre, nunca respondia. A pessoa, através da própria reflexão, devia achar as respostas. Ele motivava o aprendiz com seus diálogos em praça pública.
Sócrates nasceu em 470 ou 469 ªC, em Atenas, filho de Sofrônico, escultor e de Fenáreta, parteira. Aprendeu a arte paterna, mas dedicou-se inteiramente à meditação e ao ensino filosófico, sem recompensa nenhuma, não obstante sua pobreza. Formou sua instrução, sobretudo através de reflexão pessoal, na moldura da alta cultura ateniense da época, em contato com o que de mais ilustre houve na cidade de Péricles. Casou-se com Xantipa, que não foi a esposa ideal. Mas também ele não se preocupava com as questões domésticas.
A introspecção é característica da filosofia socrática. Exprime-se no famoso lema conhece-te a ti mesmo. – isto é, torna-te consciente da tua ignorância.
Sócrates não gostava que o chamassem de sofista. Mas é fato que tinha uma vida semelhante a eles. Não recebia dinheiro por seus ensinamentos, mas semelhantemente aos sofistas, falava nas praças públicas. Os jovens adoravam ouvi-lo. Ele queria falar sobre coisas práticas, não sobre metafísica. Assim falava sobre autoconhecimento (um dos pontos fundamentais da sua filosofia), política e ética.
Interessou-se sobre o conhecimento de si e dos homens.  Refletia sobre esse tema em público, isso fez com que surgissem muitos curiosos a sua volta, que acabaram tornando-se seus discípulos.  Acreditava que o conhecimento vem da discussão, ou seja, da partilha entre as pessoas que querem aprender e ensinar. O saber é construído em conjunto.
Sócrates interrogava as pessoas sobre o que elas acreditavam saber. O resultado era interessante. As pessoas desconheciam o que falavam! Então Sócrates percebe que a sabedoria começa pelo reconhecimento da própria ignorância.  Mesmo sendo esse processo muito doloroso. Quanto mais orgulhosa e preconceituosa for a pessoa, tanto mais difícil será a superação da ignorância. Para estas ele reservava a ironia e a refutação.  A ironia e a refutação levavam as pessoas a aceitarem e confessarem suas próprias contradições e ignorâncias. Só assim estavam livres para descobrirem coisas novas. Ajudava seus discípulos a conceberem suas próprias ideias.  A educação vem de dentro para fora da pessoa. É uma autoeducação que leva ao conhecimento de si mesmo através das discussões (diálogos). 
Não podemos confundir os diálogos com o cultivo da eloquência. Sócrates não queria levar as pessoas a se convencerem através de palavras bonitas, sonoras e atraentes. Utilizava-se da dialética. Buscava através de perguntas e respostas o esclarecimento do que é a vida virtuosa na polis. Ele queria eliminar a ignorância das almas não confundi-las com sofismas.

O mundo humano

A filosofia de Sócrates volta-se para o mundo humano, psicológico, com finalidades práticas, morais. É cético com relação a metafísica. A única ciência possível e útil é a ciência da prática. Vale dizer, o agir humano – bem como o conhecer humano – se baseia em normas objetivas e transcendentes à experiência.
A gnosiologia de Sócrates baseia-se nesses pontos fundamentais: ironia, refutação, introspecção, ignorância, indução, definição. Antes de tudo, temos que desembaraçar o espírito dos conhecimentos errados, dos preconceitos, opiniões; é este o momento da ironia, isto é, da crítica. A seguir será possível realizar o conhecimento verdadeiro (a ciência) mediante a razão.  O mestre deve tirar a instrução da mente do discípulo. O procedimento lógico para realizar o conhecimento verdadeiro é, antes de tudo, a indução: isto é, remontar do particular ao universal, da opinião a ciência, da experiência ao conceito.

A ironia, a refutação e a maiêutica

Entre os gregos a ironia era considerada uma atitude do espírito detestável. Segundo Aristóteles, o irônico peca contra a veracidade porque, em seus discursos, se recusa a revelar as suas qualidades, oculta seu saber sob a capa de uma ignorância fingida e se protege atrás de um comportamento negativo. Os contemporâneos de Sócrates o condenaram por ela. A ironia e a refutação acabam, nas mãos de Sócrates, se tornando uma atitude pedagógica e filosófica.  Essa atitude tem a finalidade de pôr a descoberto a vaidade, de desmascarar a impostura e de seguir a verdade. Ao desprezar o que a sociedade preza, ameaça as opiniões correntes e os valores consagrados. Era, dessa forma, um cidadão crítico ao questionar o que se tinha como verdade.
Com suas perguntas Sócrates deixava embaraçado e perplexo aquele que está seguro de si mesmo. Conceitos até então estáveis são vistos como problemas. Atiçava a curiosidade e a reflexão. A sua arte educativa pode ser comparada com a de sua mãe, porque ele é como o médico que ajuda nos partos do espírito. Por causa deste aspecto o método de Sócrates é chamado de maiêutica.
Por razões de método (e não por incapacidade), seus diálogos levantavam uma questão, mas não davam a solução. Servem para pôr o interrogado no caminho da solução e para que ele mesmo a encontre.

Ensinamentos filosóficos:

 Sócrates não se interessa pelos princípios supremos do universo, mas pelo valor do conhecimento humano. Não questiona o cosmos, antes de tudo examinava se os homens haviam aprofundado suficientemente os conhecimentos humanos, para se ocuparem de tais assuntos.
Na psicologia, a doutrina socrática gira em torno da imortalidade da alma. Para ele a alma é superior ao corpo e encontra-se nele como numa prisão. A morte libera a alma desta prisão e lhe abre a porta de uma vida melhor. Deve-se cuidar da alma e não temer a morte.
Quanto ao conhecimento, faz uma distinção entre opinião e verdade. O conhecimento sensível por si só não pode fazer-nos conhecer a verdade, mas somente opiniões mais sólidas. O homem é dotado só de conhecimento sensitivo. Mas, além disso, existe outro conhecimento, o intelectual. Este vai além das aparências sensíveis, porque extrai das coisas a sua verdadeira natureza, formando na mente uma noção, um conceito, de valor universal.
Sócrates foi o primeiro filósofo que procurou determinar a natureza do conceito universal e que mostrou que ele é muito diferente da opinião. A opinião varia de individuo para individuo, ao passo que o conceito universal é necessariamente o mesmo para todos.
O procedimento para chegar a aquisição do conceito universal é o indutivo.

Indução: Raciocínio cujas premissas têm caráter menos geral que a conclusão.
        
Das definições de valor limitado passa-se para definições menos imprecisas até chegar-se à definição adequada. Quando Sócrates quer definir a justiça, por exemplo, pede aos interlocutores uma definição e demonstra que ela é insuficiente. Pede outra definição e faz o mesmo... até chegar a uma definição mais satisfatória.

Para Sócrates a moralidade identifica-se com o conhecimento: a sabedoria é virtude e a virtude identifica-se com a sabedoria. Se o homem peca, é por ignorância, porque não é admissível que, conhecendo o bem o mal, escolha o mal e não o bem. Os homens que fazem o mal ignoram o bem ou não sabem que o que escolheram é mau. Ele incita seus ouvintes a procurarem a verdade e a sabedoria, porque somente a verdade e a sabedoria tornam o homem livre e virtuoso.