domingo, 26 de fevereiro de 2012

O paradoxo da solidão entre muitos...

 Prof. Amilcar Bernardi


Solitário é alguém que se sente único.  Por isso a solidão. Estando entre muitos e mesmo assim, continua sentindo-se só, precisa então abdicar de ser sujeito único.  Eis o paradoxo: quanto mais sou único, mais estou só.
Quanto mais fixo minha atenção e cuidados em mim, experimento, por consequência, especial solidão. Especial porque esta solidão existe entre muitos outros sujeitos. O usual seria a pessoa estar só quando está sem ninguém! Não seria um “sentir-se” só, mas uma solidão de fato! A solidão a que me refiro é aquela que sentem as pessoas que não reconhecem o espaço público. Entendo como espaço público aquelas situações existenciais e lugares sociais que necessitamos dividir com o outro. Somos solitários quando entendemos que todo o espaço é particular.
O aprofundamento em si mesmo, o egocentrismo, leva o indivíduo entre tantos outros, a ser solitário.  É a eterna crise que os sujeitos sociais se meteram: ser eu absolutamente é excluir o outro (o tu) absolutamente.  Pelo mesmo caminho vai a idéia de liberdade! A liberdade absoluta também é a exclusão da liberdade absoluta do outro! Sediar minha consciência somente em mim é um solipsismo doloroso. Para eu deixar esta solidão, é preciso experienciar a empatia. Projetar minha personalidade para dentro da personalidade do outro para senti-lo, deixa-me menos só, pois ao menos, esta projeção é um reconhecimento de que não sou tão único assim.
Penso que a experiência da solidão nas famílias, nas cidades e nos Shoppings tem relação com isso. Há um esforço enorme do capitalismo contemporâneo para que vivamos em nós mesmos, nos nossos desejos. Acredito que a mensagem seja a seguinte: tu és teu desejo, portanto, quanto mais tu o satisfaças, mais tu serás tu mesmo. Este consumo para que existamos sozinhos, nos deixa - obviamente - só. O mundo passa a ser um meio para mim. Indivíduos passam a serem células indiferentes umas às outras, num tecido social enfermo.
Evidente que esse culto ao indivíduo onívoro de tudo que o cerca, é uma ilusão. Inclusive a solidão é algo artificial. Há séculos sabemos que somos seres sociais.  Que só entre muitos somos humanos.  A solidão absoluta é, portanto, uma impossibilidade absoluta. É o mesmo paradoxo que se apresenta sempre, dito de outra forma.
Seguindo a idéia do parágrafo anterior, insisto que as pessoas para serem gente precisam da onipresença humana. Somos o que somos porque humanizamos tudo e tudo tem que nos humanizar. Então, é o outro e a norma que ele representa (a pessoa é uma norma, pois é uma afirmação de conduta, de desejos e sentimentos que têm que serem respeitados) que nos impele para fora do egocentrismo. Meu visinho é o impedimento da solidão total, do recolhimento em mim mesmo. Os outros humanos impedem minha loucura, meu enclausuramento na egolatria.
Pensei tudo isso porque hoje eu estava num lugar sentado entre outras pessoas. Fixado em mim mesmo, pensava nos meus problemas refletindo com meus botões. Repentinamente fomos todos solicitados a darmo-nos as mãos. Por um segundo hesitei, estava tão dentro de mim que tocar o outro era estranho! Ou melhor, tocar um estranho era sair de mim! A regra do local, que exigia das pessoas obediência aos comandos do palestrante, salvou-me de mim mesmo, pois toquei meu visinho apesar do meu constrangimento. Sorri para ele. Então senti-me mais gente. Percebi que não estou só. Entendi que me ensinaram a ser só. Aprendi que querem que eu seja só. Senti a necessidade de ser um guerreiro em busca do outro.
Ser só é uma mentira. Somos sujeitos sociais. Levamos milhares de anos para aprendermos a importância do outro. Solidão e consumo dão lucros e geram crescimento econômico. Porém, geram guerras, violência e suicídios. Eis outro dilema.
 


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A escola é um lugar de tensões...

Prof. Amilcar Bernardi

Dias atrás recebi uma mãe aflita.  Queixosa, contava que seu filho de onze anos estava tendo dificuldades de relacionamento, e por consequência, tinha notas baixas também. Alegava que seu filho não tinha amigos na sala de aula. Muitas vezes não era bem recebido nos grupos para fazer trabalhos. Quando o professor intervinha pior ficava, pois a contragosto, os colegas o aceitavam. Essa mãe sofrida descrevia um quadro onde a criança aparecia como uma pessoa que não era entendida pelos demais. Afirmou que o filho era nervoso e que quando era contraditado, não suportava e ficava “emburrado”. Ela deixou transparecer que a escola, no imaginário da mãe, deveria ser um lugar de compreensão e harmonia. A sala de aula não poderia permitir a desigualdade, e que a aprendizagem só é possível num ambiente sem tensões.
Após essa conversa, fiquei refletindo sozinho. Interpretei as queixas da jovem mãe como um equívoco. Ela partia do princípio de que a escola é um lugar sem tensões ou que, pelo menos, a direção e os professores deveriam impedir tensões. Imagino que a moça acreditava que o filho para ser feliz, tinha que ser aceito como ele era e pronto.  Dei-me o direito de ficar “matutando” e concluí que penso totalmente diferente dela.
A escola também é um lugar para tensões. Na verdade não existe um lugar de não tensão. A sala de aula é, em escala menor, a sociedade que a mantém. Então, as tensões do dia a dia dos adultos, refletem-se no das crianças e no dia a dia dos adolescentes.  Não adianta “emburrar-se”. A não aceitação imediata da gente em um grupo faz parte do aprender a ser gente. A necessidade da minha modificação e da modificação do outro para que aceitemo-nos todos, é fato. O professor (ou o juiz na vida adulta) ao provocar forçosamente a aceitação, trás para si o risco de piorar a questão. É a tensão decorrente dos processos que promove crescimento e aprendizagem. A aprendizagem é uma tensão que ao ser solucionada, provoca alívio e também novas tensões.  Se existisse um lugar sem tensões e com aceitações imediatas, este lugar não seria uma escola com certeza. A escola é um lugar de mudanças, mesmo que dolorosas.
Dores na escola? Para o espanto da jovem mãe, eu afirmo que sim. Da mesma maneira que tem a alegria, o choro e o riso. As dores do primeiro amor, as dores do primeiro fracasso, assim como as alegrias do primeiro beijo e da primeira nota boa, acontecem geralmente na escola. E acontecem de maneira democrática. Todos vão passar por muitas emoções na escola... quer queiram, quer não queiram.   O espaço escolar também é o lugar da incompreensão. Afinal, é um lugar de aprendizagem. Aprender a se fazer compreender e a compreender o outro, é a alma da aprendizagem escolar. O colégio é meio para um fim. Não é creche nem um paraíso.  Os professores são um meio para um fim.  Qual a finalidade então? A aprendizagem.  Aprender não é um processo fácil. Também não é em si mesmo doloroso. Creio que é um processo cheio de tensões. Tentar fugir delas faz a aprendizagem ser dolorosa. Fugir trás dor. Enfrentar trás crescimento e fortaleza moral.
A escola é um bom lugar, cheio de emoções, prazeres, dores e in/sucessos diários.  Assim como a vida de um adulto é.  As instituições de ensino não são propagandas enganosas da vida. Ser feliz é superar-se criando forças próprias, é se tornar autônomo. Por isso os alunos estudiosos tendem a serem felizes, porque não fogem. Resta saber o que definimos por felicidade. Eu não sei bem o que ela é, mas tenho certeza que não é a ausência de esforço. Temo que a propaganda enganosa venha das novelas, do Big Brother, dos políticos de vida fácil e da mídia que quer o consumo. A escola, insisto, é um ótimo lugar, um abençoado recanto onde os que vêm querem aprender com seu esforço pessoal e intransferível.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Palavras...


Prof. Amilcar Bernardi


Novamente vem o fim de semana. Ávido vou buscar o jornal e encontro nele a coluna do Bicca Larré. Ele não me conhece, porém sinto-me seu amigo. Gosto do que ele escreve. O assunto do meu amigo hoje é muito importante. Adoro esse tema e já escrevi algumas coisas sobre ele.  Bicca Larré, meu amigo que me desconhece, falou do meu primeiro amor: as palavras.
Não lembro quando senti meu primeiro amor. Talvez lá na educação Infantil, quando eu era criança. Porém, lembro-me das sensações maravilhosas dos meus primeiros escritos. Lembro também que fui apresentado às letras poéticas através de um bloquinho da minha mãe, a Maria.  Era um bloquinho pequeno, cor de vinho ou marrom (da capa mal me lembro).  Minha mãe tinha nele alguns poemas copiados, outros que ela mesma fez quando era adolescente. Eu achei o máximo! Minha mãe escrevia coisas bonitas! Embaixo dos poemas que ela havia feito, havia as iniciais secretas dos seus amores de guria. Eram enigmas para mim. Quem seriam eles? A letra era muito bonita, trabalhada.
Lembro que queria escrever como ela e ter amores secretos também, amores que deixariam iniciais enigmáticas embaixo de cada poema meu.  Como contou meu amigo Bicca Larré na sua crônica de hoje, tornei-me como ele um garimpeiro a buscar palavras bonitas e sonoras. Por isso, creio que meu primeiro amor foram as palavras, depois as gurias. Eu aprendi logo que todos um dia vão se apaixonar, alguns vão casar e serem felizes. Porém, poeta serão poucos, bem poucos. Amar é destino de todos. Escrever não. É escolha, é trabalho e amor ao belo.  Escrever é garimpar palavras e encontrar filões de ouros verbais. Um poeta, um escritor é um ourives de palavras, delas saem joias preciosas.
Então, meu primeiro amor foram as palavras, graças à minha mãe. Com certeza meu último amor será o mesmo, pois sou fiel.  Nunca consegui trair as palavras amando outra coisa. Nunca consegui pintar, tocar instrumentos musicais, cantar ou outra coisa qualquer.  Escrever me seduz de tal forma que nada mais posso fazer. A magia do caderninho materno de poemas copiados e inventados fez de mim para sempre um garimpeiro/ourives de palavras.
Meu primeiro e meu último amor será o mesmo. Sou um homem fiel e constante. Sou um homem previsível. Casei com as palavras ainda criança e este amor será eterno enquanto minha vida durar. Espero um dia estar num caderninho de poemas nas mãos de alguma mãe delicada, para que outro casamento com as palavras possa ocorrer.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O perigo de ser gerente.

Prof. Amilcar Bernardi



“Disciplina” é ordem imposta ou consentida (autodisciplina) que vem a favor do melhor funcionamento de uma organização. Podemos aqui entender “organização” biológica (nosso corpo) e psicológica. Disciplinar para submeter as paixões (afetos como medo, amor, irracionalidades...) em nome de um sistema de valores estabelecidos. 
 
Comer melhor para ter um corpo melhor. Gerenciar o tempo para que este renda mais. Cuidar da higiene mental em busca do melhor desempenho. Quantificar e disciplinar a vida para que esta seja mais produtiva. De cima da razão nós - gerentes da vida - observamos nossas emoções para regrá-las. Pessoa boa é aquela disciplinada, regrada, lucrativa.
 
“Gerente” é a pessoa que administra negócios, bens e serviços em busca da maximização de resultados. Administra com a autoridade de quem sabe e pode; governa evitando percalços ou falhas nos planos. Confere tudo para manter tudo sob controle: estabilidade!
 
Os gerentes entendem que sucesso é ser organizado e mentor de suas próprias metas, é ser gerente da vida e dos desejos. O descontrole é o caos, o inferno de Dante. O imprevisível é o diabo! A dor de perceber a vida como expressão de liberdade, como algo incalculável e imprevisível gera estresse. Horror: ser livre pressupõe indeterminação! 
 
Os não-gerentes contestam: Quanta maluquice usar a disciplina para fugir da contingência! Fugir da vida no autorregramento. Esquizofrenia cartesiana! 
 
Hoje estou rebelde! Sinto-me um opositor, um resistente à ordem estabelecida pela sociedade que organiza tudo para o lucro. 
 
Gostaria hoje de sugerir o desregramento de um grande amor. Gostaria de incentivar a imprevisível grande ideia que do ócio surgiu. Vamos desestabilizar para sermos criativos. Criativos! A capacidade criadora está no intangível, na liberdade e na angústia da escolha!
 
Gerentes disciplinados: há tempo para tudo... até para a indisciplina.
Perdão amigos, este é um escrito de quem está muito estressado.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Fontes verbais

 Prof. Amilcar Bernardi

Hoje lembrei das fontes de água. Delas saem água límpida. Os caminhos dessas águas seguem irracionalmente a força da gravidade e os acidentes do terreno. A fonte natural não tem consciência do que pode acontecer com a sua produção pura e cristalina. Ela apenas deixa fluir o líquido e o deixa por conta própria. A fonte existe para doar água e só.
Cada um de nós é uma fonte. Jorramos idéias através das palavras. Até nosso silêncio é um manancial de informações sobre nós.  Porém, diferentemente da fonte natural de água, não seguimos as forças irracionais da natureza. Somos criaturas muito complexas e fugimos das leis da natureza.
Quando “jorramos” nossas falas, seguimos algumas tendências, notadamente influenciados pelo convívio social. Sermos diferentes dos outros, marcar nosso diferencial não é fácil. Tudo tem um preço. Aprendemos isso jorrando falas, comunicando coisas por anos a fio. Às vezes somos inundações de águas verbais, outras vezes somos desertos. Acertar nosso desejo/necessidade de comunicar com o entendimento/abertura do outro não é fácil. Afogamos uns sendo verborrágicos, matamos outros de sede comunicando quase nada.
São poucos os falantes experientes. A maioria são apenas fontes irrefletidas de falas. Os falantes mais experientes têm consciência do que e para quem falam. Escolhem palavras, procuram ampliar vocabulário e se preocupam em relacionar o fluxo das águas verbais com a capacidade de armazenamento dos ouvidos alheios.  Sim, porque existem ouvidos rasos, que pouco retêm, escorre quase tudo. Tem ouvidos seletivos, escolhem o que querem armazenar. Há também ouvidos profundos que acolhem tudo, depois selecionam para esquecer o que não é importante.
Os mais experientes são amorosos ao saberem-se fontes. Procuram manter as águas verbais puras, para que todos possam dela beber. Os falantes cuidadosos procuram não ofender quem procura saciar a sede nas suas águas. Sabem que a água tem que ser potável, estar agradável ao paladar e sempre que possível cristalinas.
Os menos experientes jorram de qualquer jeito. Acabam perdendo o controle, são inconscientes do que pode acontecer com suas águas. Algumas fontes provocam deslizamento de lama e soterram pessoas. Outras apenas sujam suas águas escorrendo por qualquer lugar. Tem outros ainda que já jorram águas contaminadas, são fontes prejudicadas por infiltração de coisas ruins. Fazem mal a saúde.
De qualquer forma somos fontes verbais. Não podemos reprimir nossas águas por muito tempo, acabamos por escorrer nossos conteúdos através das palavras. É inevitável, faz parte da nossa essência. Porém, cuidemos da qualidade. Fontes más fazem estragos incalculáveis. Cuidemos de nós mesmos, sejamos boas fontes de águas puras e vivas. Que todos possam vir beber de nós e tenham sua sede de compreensão e respeito satisfeita.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O sonho de ser livre



Prof. Amilcar Bernardi


      O sonho dele era ser livre. Não depender das pessoas. Ser independente, sair por aí sem lilmites. Admirava as aves porque eram livres e viajavam pelos ares sem depender de nada. Batiam as asas e pronto.

      Ele ficava olhando os céus e suspirava. No solo tudo era dependência, tudo era cronometrado. Nos céus não, nunca uma nuvem teve horário para navegar pelos oceano do céu. Nunca um condor pediu permissão para voar.

      Num dia estranho um sujeito mais estranho ainda, disse a ele que tinha poderes especiais e poderia conceder-lhe o desejo de ser livre, de voar sem pedir nada para ninguém. O sujeito estranhíssimo afirmou que poderia dar a liberdade plena. Só queria algo em troca.

      Ele pensou: Este homem maluco é o demônio e quer minha alma. Todas os mitos são assim, alguém oferece algo e pede a alma da pessoa em troca. Então foi logo dizendo: Se na nossa negociação eu não perderei minha alma nem irei para o inferno, o negócio está feito. Achou-se muito prudente ao dizer isso.

      O sujeito obscuro sorriu e disse nada ter a ver com almas, demônios ou infernos!

Então ele prontificou-se a ouvir a proposta da criatura nebulosa.
Porém, antes de ouvir a proposta, num passe de mágica, asas possantes e muito belas, douradas e fortes, surgiram em suas costas. Seus pulmões obtiveram novo vigor e quase sem querer alçou voo pelos ares. Quanto mais forte batia as asas, mais sentia a liberdade! Bastava seu querer e ia pelos espaços viajando nem nada temer pelos ares e montanhas. O sol no rosto, o vento nos cabelos e a visão do horizonte sempre a frente o fizeram sentir-se feliz. Sabia que seu sonho havia sido realizado.

      O sujeito estranho esperou ele pousar quando quis, então disse-lhe: Eu quero apenas uma coisa de ti. E podes dizer não quando quiseres e tudo voltará como era antes. Eu preciso alertar que essas asas atrofiam se pararem. Tu deves estar sempre exercitando-as, sempre deves ficar curtindo tua liberdade plenamente. Se parares por mais que segundos, elas desaparecerão e voltarás a ser uma pessoa comum, pouco livre, sujeita ao trabalho, aos patrões e tudo mais. Portanto, só isso quero de ti: que não pares nunca!

      Ele achou o pedido muito fácil, razoável, afinal, ia ao encontro do seu desejo de ser livre, cada vez mais livre. Foi só pensar nisso e o homem estranho sumiu e as asas permaneceram em suas costas, firmes. Imediatamente alçou voo novamente. Não havia limite algum, nem fome nem sede sentia. Era cem por cento livre. A sensação era indescritível porque podia tudo! Aos poucos percebeu que podia tudo se necessariamente não precisasse de nada!

      Quando a solidão bateu e parou para pensar nisso, as asas enfraqueceram e ele voltou, enlouquecido de medo de perdê-las, a voar para curtir sem parar a liberdade plena. Quando deu-se um tempo para pensar se havia outra pessoa como ele, quase não consegue voar novamente. Ressurge o medo de perder tudo que tinha, ou perder o nada que tinha (pois qualquer coisa que tivesse o faria menos livre). Então alçou voos cada vez mais altos e mais rápidos. Desaprendeu a caminhar, esqueceu a fala, não sabia mais respeitar o outro pois... não havia necessidade de outras pessoas! Qualquer necessidade era contrária a liberdade plena.

      Ainda em seus ouvidos ressoava: a qualquer momento podes dizer não e tudo será como antes! O terror de que a mágica acabasse fez com que abdicasse da reflexão sobre o que estava acontecendo.

      Tão livre ele ficou que ele está preso. Está preso em si mesmo até hoje. Seu voo não tem rumo, não tem sentido. É um triste presidiário com asas. Seu voo só o faz levar suas grades por onde vai.

      Ele tão livre está que não vê o que os outros veem quando percebem seu voo. Os olhos dos outros percebem um cubo gradeado com enormes asas musculosas, dentro um corpo cego. A força delas vem do exercício diário de levar aquelas grades enormes e pesadas pelos espaços. Todos ficam arrepiados de susto! Tremem ao ver tal horror. Não querem o mesmo fim. Não querem tal liberdade. Ela aprisiona demais.


É uma maldição tão terrível que agora ao entender o acontecido, viram o rosto para não comtemplarem tal sofrer.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Concursos de beleza? (postado novamente)

Prof. Amilcar Bernardi


Os racionalistas como Descartes defendiam a impropriedade do corpo e exaltavam a razão. As coisas do espírito (racionalidade) não se confundiam com as coisas corporais. O corpo (os sentidos) se engana a todo momento, portanto, não é confiável. Inclusive prejudica a racionalidade, diziam. Lembrem (como exemplo) que foram os cálculos matemáticos e a inventividade do espírito humano que nos garantiram saber o tamanho verdadeiro da lua! O olho não foi capaz disso.
Pensavam os racionalistas que cultuar o corpo como fonte do conhecimento e da humanidade do homem é errado. O cultivo do espírito (razão) é o que faz do homem o que ele é, o que o diferencia dos animais.
Claro que essas afirmações já estão desgastadas pelo tempo. Hoje sabemos que espírito sem corpo é fantasma e corpo sem espírito é zumbi. Quero dizer que a racionalidade acontece através do corpo (dos sentidos) e que corpo sem racionalidade não é um ser humano.
Agora pergunto: Quando colocamos a beleza (do corpo) como um valor fundamental, o que acontece?
Todos os que participam dos concursos de beleza vão dizer que essa pergunta não faz sentido. Dirão que a pessoa não é bonita porque tem um corpo bonito e sim porque tem simpatia, fala bem, tem expressão corporal e cênica. Enfim, outros atributos (além dos físicos) fazem aquela pessoa bonita! Ficam inclusive ofendidos e nos chamam de ignorantes se falarmos que, mesmo assim, o que vale mesmo é o corpo. Os adeptos dos concursos de beleza quando advogam que a beleza da alma se confunde com a beleza da plástica corporal, tentam se defender antecipadamente. Defendem-se dos que dizem que tais concursos são principalmente exposição de corpos. A necessidade desta defesa é compreensível porque é muito difícil defender de forma clara uma vitrine de corpos humanos. Então é imperioso encontrar algo mais do que a exposição de pele, cabelos e ossos para podermos validar moralmente um concurso de beleza.
Quando a bela criança de seis anos, Natália Stangherlin, ganha duas vezes concursos internacionais de beleza, podemos dizer que estamos incentivando nela aquilo que a faz humana? Quero dizer, estaríamos dizendo a esta criança linda que o principal na vida não é a plástica? Ou estaríamos dizendo, no sentido do primeiro parágrafo, que o corpo sem espírito (racionalidade) deve ser cultuado? Melhor ainda: uma criança indefesa, aos seis anos, exposta aos flashes, ao glamour, às viagens internacionais, conseguirá internalizar valores outros que não somente os da beleza física? Quais valores estariam sendo fixados na alma dessa criança, antes que ela tenha condições de refletir sobre os próprios valores?
Claro que os defensores dirão ao ler o parágrafo anterior: convém entender que a beleza corporal dura pouco tempo. Que antes da reflexão madura é imperioso curtir a juventude e a graça de ser bela.
A pressa justificaria a irreflexão. Afinal, ficamos feios muito cedo.
Arrisco-me muito ao escrever a minha opinião. Serei duramente criticado.
Entendo que as crianças não sabem o que é o belo. É a gente que ensina. Também não sabem o que é o bem. A gente ensina. A criança é linda porque é pura. È linda porque é boa. A criança não é linda porque é bela na plástica corporal. O corpo é um detalhe pequeno se pensarmos a beleza de ser criança.
Cabe saber se aos seis anos salientar a beleza plástica é algo bom. Gostaria de manter essa dúvida em minha alma até que provem em contrário, ou seja, que deixar a criança exposta ao olhar público, ávido por belezas passageiras e desejosos de corpos magníficos, faz bem. Se faz bem para o desenvolvimento das meninas e meninos como um todo! Insisto: como um todo. O desenvolvimento de uma faceta só empobrece.