sábado, 5 de novembro de 2011

Meio copo de água e a (in) disciplina na escola

Prof. Amilcar Bernardi

Em cima de uma mesa está um copo com água bem gelada. Para ser mais exato, meio copo de água gelada no verão bem quente.  Algumas pessoas ficarão felizes em ter meia porção de água numa temperatura tão alta. Outras tantas ficarão frustradas por terem apenas a metade de um copo de água.  Evidentemente todos estão vendo a mesma coisa. O que está variando é a relevância que dão às facetas, às parcelas da realidade que percebem. Nesse caso, ninguém está errado. Só podemos avaliar as consequências das escolhas que o observador fez ao perceber o fato indiscutível: há meia porção de água no copo e, portanto, ao mesmo tempo, não há água na outra porção.
Penso que a vida é isso, pontos de vista sobre fatos. Os fatos são indiscutíveis, mas minha leitura deles é outra coisa! Nossas opiniões sobre a escola não seguem princípio diferente disso.  
Uma possibilidade (uma porção do copo) é julgar que a disciplina é algo imposto, sempre imposto.  Nunca será algo justo (mas democrático) porque sempre haverá alguém esmagado pela regra determinada pela maioria. Para estes - a minoria - a norma sempre será externa, pois sempre irá contra seus desejos. Seguindo essa reflexão, a regra sempre é dual: de um lado alguém que ordena, de outro alguém que obedece. E toda a aquiescência é acrítica.  Esta forma de pensar não é totalmente desprezível. São apenas facetas de um fato: existem normas.
Por outro lado (outra porção do mesmo copo) é possível refletir diferente. Podemos entender a disciplina como uma sujeição das atividades instintivas às refletidas. Então as regras são (meus) limites impostos aos (meus) instintos. A reflexão limita nossos desejos.  As regras, sob este prisma, são o ordenamento do meu psiquismo de dentro para fora. Claro, ao mesmo tempo, sendo que a razão trabalha sob influência dos valores sociais – introjetados – também é um ordenamento de fora para dentro. Portanto, temos que ser sempre sujeitos críticos. Diante dessa dialética feita das regras que eu crio e das regras que criam para mim, eu faço-me.
A sala de aula é nosso “copo de água”.  Um tanto do tempo escolar é regrado. Outra porção é mais livre. Alguns/muitos intelectuais veem com maior relevância o lado cheio de disciplina, a porção irrespirável, locupletada de “nãos” e preenchida por ranços autoritários. Estes pensadores ainda enxergam o fazer medieval na escola atual. Não posso dizer que estão errados, porém, posso afirmar que estão vendo parte do copo e um copo é feito de suas partes, se tirar uma, não é mais copo.
Numa escola só há regras porque há (crescente) liberdade a ser regrada. Sem liberdade, não haveria porque tantos questionamentos sobre a (in) disciplina. Inclusive, muitas vezes a liberdade nas escolas beira a permissividade.  Qualquer pessoa pode ver nos corredores das escolas (como se fosse o sangue nas veias) crianças e jovens correndo, andando, falando, brincando, escorrendo escadas abaixo como cascatas, ou subindo as escadas como as águas carregadas pelas rodas d’água das fazendas. Estudantes fluem, escorrem e respingam em todos os lugares escolares... irreprimíveis.  Então as regras são como as normas de trânsito, existem para que o fluxo seja maior, mais rápido e mais seguro. Ninguém, no trânsito, deve morrer porque é livre para dirigir como quer. São portanto, regras que libertam.
Eu gostaria que esse texto servisse para reflexões.  Acredito que por ignorância algumas vezes, maldade muitas outras vezes, muitos afirmam que a disciplina na escola é isto ou aquilo. A disciplina às vezes é outra coisa, outras vezes ela é muitas coisas. Fica a reflexão: que porção do copo disciplina estamos privilegiando e qual estamos ignorando? 

domingo, 30 de outubro de 2011

Política: espelho de Sísifo.

Prof. Amilcar Bernardi

Na historia infantil clássica, a rainha tresloucada pergunta ao espelho: há alguém mais bonita do que eu no reino?  O espelho como todos sabem, não responde como a toda poderosa e bela rainha queria.  Enraivecida, manda matar a bela mocinha. O espelho tem dessas coisas. Nem sempre mostra o que queremos ver. Então somos tomados por emoções incontroláveis.
A política é nosso espelho. O que acontece espelha quem somos. Podemos até não gostarmos, afinal, nessa área, a verdade sempre dói.  Porém, não podemos mandar matar ninguém nem destruir o que não gostamos na imagem apresentada. Fica só a angústia e a tristeza com o que vemos de nos mesmos. Como no mito de Sísifo (Sísifo foi condenado a rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo), de tempos em tempos somos chamados a reconstruir nossa imagem, mas o resultado é sempre o mesmo.
O fundo mais profundo que poderíamos descer aconteceu. Olhamos o espelho da política e nos vemos Tiririca! Palhaços, ignorantes e maliciosos. É esta a imagem que está nos incomodando. Os espelhos não mentem. Apenas refletem o que se posta à frente deles. Não podemos quebrar o espelho nem podemos negar o que nele se reflete. É a nossa maldição de sujeitos civilizados e construtores da cidadania.
A política é nosso espelho de Sisifo, sempre mostrando que tudo se repete e reflete!  Esperando-nos nas eleições seguintes estão milhares de Titiricas. O triste espelho da política nos mostrará novamente nossas escolhas a modo titiriquês. 

domingo, 16 de outubro de 2011

Ninguém deve nada a ninguém.

Prof. Amilcar Bernardi
  
A internet trouxe uma aceleração incomensurável para o fluxo de informações e contra-informações. As grandes redes televisivas não conseguem sequer acompanhar a velocidade do que está sendo informado nos blogs, no Face, no Twitter e nas redes similares on-line. O colapso é ainda maior porque, as grandes mídias tradicionais são movidas a peso de ouro. Qualquer programa televisivo ou até jornal impresso, depende dos anunciantes. Suas estruturas são complexas, lentas, caras, dependentes de patrocínios.  Cada informação dispensada por tais empresas são como canhões, tem grandes impactos.  Portanto, estão sujeitas a processos judiciais caros, longos e muitas vezes com desfechos injustos.
A grande imprensa tem uma relação incestuosa com a política partidária, muitas vezes para poder sobreviver. Movem imensas quantidades de capitais e promovem crescimento econômico, porém, um revés na economia globalizada e o pior pode acontecer. Os leitores, ouvintes ou telespectadores são clientes antes de tudo. As notícias têm que serem apresentadas de maneira a minimamente agradar pela qualidade e beleza. Além disto, se for TV, depende de toda uma parafernália para que o sinal seja de qualidade. Se jornal, até seus entregadores são importantes. Nas grandes empresas do ramo a notícia é meio para um fim, a manutenção da empresa e, preferencialmente, não só manter, mas dar lucro. As mensagens são impessoais, mas, têm que agradar as pessoas, indivíduos com gostos irrepetíveis e cada vez mais exigentes.
No ciberespaço o trabalho das mídias off-line está sendo capilarizado e pessoalizado. Pessoalizado porque as pessoas acrescentam às notícias das grandes mídias suas experiências, expectativas e críticas. Os indivíduos vão para seus Pcs e refazem, personalizam, colorem as informações e passam adiante pela rede. Os internautas, polinizadores, dão (re)vida ao comunicado pela grande imprensa e repassam um tanto de si junto com as informações. Os cidadãos cibernautas não querem patrocinadores, não tem mega estruturas e nem querem convencer. Armados com seus laptops vão à luta, como beija-flores com pólen nas patas, voam por aí polinizando livremente. As pessoas comunicam agora de maneira personalizada, recriando. Comunicam pelo prazer de comunicar, de fazer-se ouvido, de fazer parte de uma gigantesca rede informacional. Teclam sem saber para quem. Teclam para outros teclados reteclarem. Fazem crítica contundente, provocam medo nos poderosos. Não precisam prestar contas para ninguém nem produzir textos elaborados. Isto porque não tem consumidores do outro lado do monitor. São livres. Se não gostam bloqueiam ou deletam. Se gostam, viram seguidores e recomendam sites, blogs e pessoas do Twitter. Neste mundo de ninguém, todos são donos dos seus narizes, ninguém deve nada para ninguém.
O mundo ciberinformacional é cheio de perigos. Tudo que é dito precisa ser checado. Como todos são dignos de serem ouvidos na rede, todo o cuidado é pouco. Porém, os cibernautas são coerentes com seus modos de pensar. Não teclam o que não querem teclar. Comunicam por prazer. Comunicadores e receptores se confundem na velocidade on-line: ao mesmo tempo que recebem, emitem. Tudo a um tempo só. Neste sentido a verdade pessoal se apresenta nua e crua. Desde que eu tenha bom senso, digito o que quero digitar. A censura inexiste. Ninguém deve nada a ninguém.


sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Somos intertexto e contexto.

 Prof. Amilcar Bernardi

Somos textos. Cada um de nós é um texto a ser lido. Cada roupa, cada trejeito, cada  gesto, cada palavra dita compõe algo a ser lido. Somos um poema, temos informações harmônicas entre si. Cada sujeito tem uma sintaxe muito especial. Estamos expostos no mundo, estamos aqui para sermos lidos.
Somos pausas, somos exclamações, somos pontos e vírgulas todos os dias. Somos signos para serem decodificados. Apenas pelo fato de existirmos as pessoas que nos rodeiam, que sabem de nós, são obrigadas a encontrar um sentido para nós, um significado para o que estamos afirmando com nossa presença. Somos frases, somos textos complexos.
Tu e eu somos citados, parafraseados e parodiados todo o tempo. Estamos e somos nos discursos alheios. Nos tornamos imagens, palavras e discursos nos outros. Por isso somos muito importantes, fazemos a diferença porque somos fala e provocamos falas. Cada um torna-se vocabulário e conhecimento para outros.
Somos intertextos. A presença discursiva das pessoas invade o que eu sou. Eu falo o já falado. Eu comunico o que já foi comunicado. Porém quando me dou a conhecer, quando me dou à leitura de quem quiser, passo a ser parte do repertório alheio, passo a ser contexto para o outro.
As pessoas são informações que penetram em mim e me constituem. Da mesma forma que passo a constituir todos os que entram em contato comigo.
A humanidade é um grande comunicado onde cada um é uma palavra, pontuação ou verbo. Juntos constituímos um enorme texto chamado humanidade.

domingo, 9 de outubro de 2011

O cinismo de Antístenes, o aluno adolescente e o barril


Prof. Amilcar Bernardi


Os antigos atenienses, pós-socráticos, tinham outro sentido para a palavra cínico. Os cínicos eram seguidores de Antístenes.  Este pregava a supremacia da virtude e a inutilidade das coisas materiais. E como esses seguidores eram indiferentes às coisas materiais, tornavam-se superiores à maioria das pessoas (frágeis porque podiam ser atingidas através de suas posses).  O que importava é a pureza da alma e a liberdade, a não-sujeição a ninguém; muito menos aos desejos.
Diógenes é um cínico famoso. Vivia dentro de um barril e não possuía mais do que uma túnica, um cajado e um embornal de pão.  Alexandre Magno um dia perguntou-lhe se ele tinha algum desejo e disse-lhe que, caso tivesse, seu desejo seria satisfeito. Ao que Diógenes respondeu: "Sim, desejo que te afastes da frente do meu sol". Com isto Diógenes queria demonstrar que era mais rico e mais feliz que o grande conquistador. Diógenes tinha tudo o que desejava.
Hoje com alguma curiosidade vejo inúmeros adolescentes tendo uma atitude que me lembra o cinismo. Mera lembrança é claro.
No corredor da escola está o aluno. De nada precisa além de sua roupa, piercing, tatuagem, penteado e sua pasta atopetada de material escolar.  A felicidade está dentro dele mesmo, de nada mais precisa. Quando toca a sirene para o início da aula ele permanece no corredor. Então o professor diz que ele ficará fora da sala de aula. O aluno, na indiferença de quem tudo tem e de quem nada precisa, encolhe os ombros. Seu olhar sereno e o sorriso tranqüilo autorizam o mestre a deixa-lo para fora. Esse jovem nada mais precisa além do MP4, do aparelho nos dentes e da sua sabedoria. Mostra sua superioridade e sua riqueza interna rejeitando a escola.
O “aluno-diógenes” quando interpelado pelo diretor, assim como Carlos Magno interpelou o sábio grego, responde: “Diretor, desejo que te afastes de mim, da minha vida, da minha namorada e da minha felicidade ignorante dos temas acadêmicos”.Tamanha lucidez do aluno-sábio impressiona o diretor, que chama os pais dessa feliz criatura, para que possam, juntos, entender tal filosofia complexa. Mas essa filosofia é por demais difícil para se compreender em um ano só. O aluno então é convocado a repetir o ano letivo para aprofundar suas meditações. Repete de ano inúmeras vezes para ampliar sua felicidade interior e, quem sabe, fazer discípulos. Mas os demais pais, que não possuem condições intelectuais para entender o “aluno-diógenes”, impedem que seus filhos se tornem fiéis discípulos. Solitário, mas feliz, o sábio adolescente segue seu caminho.
Estamos cheios de “alunos-diógenes”. Querem passar a adolescência felizes e auto-suficientes.  Entra ano e sai ano e eles estão lá. Sábios, imperturbáveis e... cínicos (no sentido grego – é claro!). Fico feliz com tal pureza de espírito e largueza de horizontes. Mas também fico um tanto preocupado. Será que ainda nos dias de hoje é possível viver dentro de um barril e não possuir mais do que uma túnica, um cajado e um embornal de pão?
Aluno-diógenes”, é bom lembrares que tal filosofia dura só a adolescência. Depois, o velho barril filosófico vai para a tua garagem ao lado do carro da família que está indo para a praia (com tua esposa e teus dois filhos pequenos). Mas antes de viajar é bom fechares bem a casa que os ladrões estão soltos, ligar o alarme, contratar a firma de segurança. É bom deixares pago a água, a luz e o gás.  Ah! Não esqueças de levar esta crônica para que os teus filhos pequenos leiam... porque um dia eles também serão filósofos adolescentes. Entra ano e sai ano e eles estão lá...

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A terrível experiência na floresta

Achei que conhecia aquela floresta. Muitas vezes por ela andei e acreditava conhecê-la. Coisa de gente jovem e inexperiente, confesso. Porém, ficou a lição: nunca subestime os perigos da floresta. Sempre há surpresas e de cada canto algum animal pode saltar e ferir.
Naquela floresta de palavras, as árvores de sílabas eram altas, quase tapavam o sol. Era difícil guiar-se. Então eu me perdi.  Cachoeiras verbais, enormes, saciaram minha sede, mas o perigo de cair nelas, ser tragado e morrer sem saber nadar, era enorme.  Resolvi, para sair daquela selva perigosa, seguir as águas do rio. Pareceu-me mais fácil.  Mera ilusão! Concordâncias verbais nadavam perigosamente naquelas águas. Mesmo eu ficando nas margens, elas olhavam-me a espera da queda fatal. Era aterrador. Uivos das concordâncias nominais surgiam da selva densa. Fiquei terrificado. Se caísse nas águas sem saber nadar, seria devorado ou afogado. Se optasse por ficar às margens, poderia ser atacado a qualquer segundo, pois não conhecia bem essas concordâncias verbais. Como seriam? Talvez, pelo medo que sentia, fossem criaturas enormes a espera do meu erro. Fatalmente eu iria morrer nos dentes delas.
Já era tarde. Ia anoitecer. Então pensei em fazer uma fogueira para assustar as feras. Percebi que iria ficar a noite na floresta das palavras. Acalmei-me. Respirei fundo. Era só fazer fogo. As feras e insetos fogem do fogo.  Juntei galhos de dicionários já mortos pelo tempo ou derrubados por tempestades gramaticais.  Os ventos sempre derrubam das árvores dicionários, galhos que são úteis aos perdidos. Juntei vários deles e fiz uma estrutura para por fogo.   Após as chamas, fiquei mais aquecido. As trevas da noite estavam rapidamente tomando a floresta.  O medo era terrível. Eu ouvia as acentuações gráficas rastejarem pelo mato. Se fossem venenosos eu estava perdido! Era uma picada só e eu morreria sem ajuda. Tremi ao lembrar-me que nas selvas não existem gramáticos para salvar os incautos perdidos! Era meu fim, com certeza.
Ditongos voavam e picavam minha pele. Os hiatos eram os piores, pois eram maiores. Qual repelente seria forte o suficiente para afastá-los? Nenhum! Minha pele ardia, mas eu era jovem e podia suportar. Ao fundo da paisagem negra da noite, tritongos rugiam. Creio que caçavam a noite, nem sei. Eu sabia que, quando o dia amanhecesse, alguém viria salvar-me! Muitas pessoas sabiam que eu adorava perambular pela selva de palavras. Com certeza eu seria salvo!
O frio era muito intenso.  Ainda bem que eu havia juntado alguns morfemas gostosos, eram frutinhas de aparência horrorosa, mas após agente se acostumar, ficam aceitáveis ao paladar. Não podia negar que os morfemas são úteis nessa floresta terrível! Vejam bem, é bom ter cuidado. As desinências são frutinhas que podem provocar dor de barriga, e como todos sabem, na mata a desidratação pode ser fatal!  É preciso conhecer bem a floresta das palavras para sobreviver. Por isso que a maioria das pessoas não sobrevivem nela.
O sono era tão intenso que amontoei adjetivos para travesseiros. Pedaços de substantivos cobriam-me. Sem fome e um pouco aquecido, iria sobreviver ao medo e aos animais perigosos. Com muita sorte os advérbios fatais e preposições assassinas nem perceberiam que eu estava ali, indefeso. Eu sou um sujeito de sorte, sempre fui. Já tinha sobrevivido muitas vezes naquela floresta complexa e perigosa. Eu era forte, iria ficar vivo e contar para os outros minha experiência!
Acordei ouvindo gritos! Haviam me encontrado! Quanta alegria! Eram corajosos policiais da guarda sintática! Armados com períodos simples, estavam seguros contra os terrores da selva. Finalmente estava feliz. Finalmente sairia bem da minha aventura. Aprendi muito. Quando eu voltar, e sempre voltarei, estarei mais preparado. Nenhum adjunto adnominal ou complemento verbal fará com que eu desista da selva.
Ufa! Estou cansado.  Mas aguardem-me! Logo terei mais aventuras para contar.