domingo, 9 de outubro de 2011

O cinismo de Antístenes, o aluno adolescente e o barril


Prof. Amilcar Bernardi


Os antigos atenienses, pós-socráticos, tinham outro sentido para a palavra cínico. Os cínicos eram seguidores de Antístenes.  Este pregava a supremacia da virtude e a inutilidade das coisas materiais. E como esses seguidores eram indiferentes às coisas materiais, tornavam-se superiores à maioria das pessoas (frágeis porque podiam ser atingidas através de suas posses).  O que importava é a pureza da alma e a liberdade, a não-sujeição a ninguém; muito menos aos desejos.
Diógenes é um cínico famoso. Vivia dentro de um barril e não possuía mais do que uma túnica, um cajado e um embornal de pão.  Alexandre Magno um dia perguntou-lhe se ele tinha algum desejo e disse-lhe que, caso tivesse, seu desejo seria satisfeito. Ao que Diógenes respondeu: "Sim, desejo que te afastes da frente do meu sol". Com isto Diógenes queria demonstrar que era mais rico e mais feliz que o grande conquistador. Diógenes tinha tudo o que desejava.
Hoje com alguma curiosidade vejo inúmeros adolescentes tendo uma atitude que me lembra o cinismo. Mera lembrança é claro.
No corredor da escola está o aluno. De nada precisa além de sua roupa, piercing, tatuagem, penteado e sua pasta atopetada de material escolar.  A felicidade está dentro dele mesmo, de nada mais precisa. Quando toca a sirene para o início da aula ele permanece no corredor. Então o professor diz que ele ficará fora da sala de aula. O aluno, na indiferença de quem tudo tem e de quem nada precisa, encolhe os ombros. Seu olhar sereno e o sorriso tranqüilo autorizam o mestre a deixa-lo para fora. Esse jovem nada mais precisa além do MP4, do aparelho nos dentes e da sua sabedoria. Mostra sua superioridade e sua riqueza interna rejeitando a escola.
O “aluno-diógenes” quando interpelado pelo diretor, assim como Carlos Magno interpelou o sábio grego, responde: “Diretor, desejo que te afastes de mim, da minha vida, da minha namorada e da minha felicidade ignorante dos temas acadêmicos”.Tamanha lucidez do aluno-sábio impressiona o diretor, que chama os pais dessa feliz criatura, para que possam, juntos, entender tal filosofia complexa. Mas essa filosofia é por demais difícil para se compreender em um ano só. O aluno então é convocado a repetir o ano letivo para aprofundar suas meditações. Repete de ano inúmeras vezes para ampliar sua felicidade interior e, quem sabe, fazer discípulos. Mas os demais pais, que não possuem condições intelectuais para entender o “aluno-diógenes”, impedem que seus filhos se tornem fiéis discípulos. Solitário, mas feliz, o sábio adolescente segue seu caminho.
Estamos cheios de “alunos-diógenes”. Querem passar a adolescência felizes e auto-suficientes.  Entra ano e sai ano e eles estão lá. Sábios, imperturbáveis e... cínicos (no sentido grego – é claro!). Fico feliz com tal pureza de espírito e largueza de horizontes. Mas também fico um tanto preocupado. Será que ainda nos dias de hoje é possível viver dentro de um barril e não possuir mais do que uma túnica, um cajado e um embornal de pão?
Aluno-diógenes”, é bom lembrares que tal filosofia dura só a adolescência. Depois, o velho barril filosófico vai para a tua garagem ao lado do carro da família que está indo para a praia (com tua esposa e teus dois filhos pequenos). Mas antes de viajar é bom fechares bem a casa que os ladrões estão soltos, ligar o alarme, contratar a firma de segurança. É bom deixares pago a água, a luz e o gás.  Ah! Não esqueças de levar esta crônica para que os teus filhos pequenos leiam... porque um dia eles também serão filósofos adolescentes. Entra ano e sai ano e eles estão lá...

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A terrível experiência na floresta

Achei que conhecia aquela floresta. Muitas vezes por ela andei e acreditava conhecê-la. Coisa de gente jovem e inexperiente, confesso. Porém, ficou a lição: nunca subestime os perigos da floresta. Sempre há surpresas e de cada canto algum animal pode saltar e ferir.
Naquela floresta de palavras, as árvores de sílabas eram altas, quase tapavam o sol. Era difícil guiar-se. Então eu me perdi.  Cachoeiras verbais, enormes, saciaram minha sede, mas o perigo de cair nelas, ser tragado e morrer sem saber nadar, era enorme.  Resolvi, para sair daquela selva perigosa, seguir as águas do rio. Pareceu-me mais fácil.  Mera ilusão! Concordâncias verbais nadavam perigosamente naquelas águas. Mesmo eu ficando nas margens, elas olhavam-me a espera da queda fatal. Era aterrador. Uivos das concordâncias nominais surgiam da selva densa. Fiquei terrificado. Se caísse nas águas sem saber nadar, seria devorado ou afogado. Se optasse por ficar às margens, poderia ser atacado a qualquer segundo, pois não conhecia bem essas concordâncias verbais. Como seriam? Talvez, pelo medo que sentia, fossem criaturas enormes a espera do meu erro. Fatalmente eu iria morrer nos dentes delas.
Já era tarde. Ia anoitecer. Então pensei em fazer uma fogueira para assustar as feras. Percebi que iria ficar a noite na floresta das palavras. Acalmei-me. Respirei fundo. Era só fazer fogo. As feras e insetos fogem do fogo.  Juntei galhos de dicionários já mortos pelo tempo ou derrubados por tempestades gramaticais.  Os ventos sempre derrubam das árvores dicionários, galhos que são úteis aos perdidos. Juntei vários deles e fiz uma estrutura para por fogo.   Após as chamas, fiquei mais aquecido. As trevas da noite estavam rapidamente tomando a floresta.  O medo era terrível. Eu ouvia as acentuações gráficas rastejarem pelo mato. Se fossem venenosos eu estava perdido! Era uma picada só e eu morreria sem ajuda. Tremi ao lembrar-me que nas selvas não existem gramáticos para salvar os incautos perdidos! Era meu fim, com certeza.
Ditongos voavam e picavam minha pele. Os hiatos eram os piores, pois eram maiores. Qual repelente seria forte o suficiente para afastá-los? Nenhum! Minha pele ardia, mas eu era jovem e podia suportar. Ao fundo da paisagem negra da noite, tritongos rugiam. Creio que caçavam a noite, nem sei. Eu sabia que, quando o dia amanhecesse, alguém viria salvar-me! Muitas pessoas sabiam que eu adorava perambular pela selva de palavras. Com certeza eu seria salvo!
O frio era muito intenso.  Ainda bem que eu havia juntado alguns morfemas gostosos, eram frutinhas de aparência horrorosa, mas após agente se acostumar, ficam aceitáveis ao paladar. Não podia negar que os morfemas são úteis nessa floresta terrível! Vejam bem, é bom ter cuidado. As desinências são frutinhas que podem provocar dor de barriga, e como todos sabem, na mata a desidratação pode ser fatal!  É preciso conhecer bem a floresta das palavras para sobreviver. Por isso que a maioria das pessoas não sobrevivem nela.
O sono era tão intenso que amontoei adjetivos para travesseiros. Pedaços de substantivos cobriam-me. Sem fome e um pouco aquecido, iria sobreviver ao medo e aos animais perigosos. Com muita sorte os advérbios fatais e preposições assassinas nem perceberiam que eu estava ali, indefeso. Eu sou um sujeito de sorte, sempre fui. Já tinha sobrevivido muitas vezes naquela floresta complexa e perigosa. Eu era forte, iria ficar vivo e contar para os outros minha experiência!
Acordei ouvindo gritos! Haviam me encontrado! Quanta alegria! Eram corajosos policiais da guarda sintática! Armados com períodos simples, estavam seguros contra os terrores da selva. Finalmente estava feliz. Finalmente sairia bem da minha aventura. Aprendi muito. Quando eu voltar, e sempre voltarei, estarei mais preparado. Nenhum adjunto adnominal ou complemento verbal fará com que eu desista da selva.
Ufa! Estou cansado.  Mas aguardem-me! Logo terei mais aventuras para contar.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Obviedades


Fiquei com vontade de falar coisas óbvias, então escreverei infantilidades. Vou falar de árvore e de padaria.

Uma maneira eficiente, porém, trabalhosa de matar árvores, é impedir que suas raízes se alimentem. Demora um tempão. É preciso alguns cuidados para impedir que as raízes achem nutrientes, mas com certeza ela morrerá silenciosamente.  Secará, cairão as folhas, o verde desaparecerá até que morra totalmente.

Outra obviedade: se eu tenho uma padaria, fico muito preocupado com os cursos de formação de padeiros. Porque se as pessoas não querem fazer mais pães ou se fizerem pães ruins, como vou sobreviver? Eu vivo de pães! Uma sociedade que não sabe fazer pães, está fadada a não ter cafés da manhã gostosos! Ela começará a reclamar da ausência dos pães. E o pior: não se lembrará de se importar com a qualidade ou com a ausência dos padeiros! 

 Credo! Estes dois parágrafos são óbvios demais! Aí está a chave da questão: a obviedade!

          Coisas evidentes muitas vezes tornam-se invisíveis por parecerem insignificantes. As pessoas não estão vendo o que está acontecendo ante nossos olhos. Se a educação fosse uma árvore, os educadores seriam as raízes.  Fácil entender que a educação formal é feita de professores. Então, basta olharmos para o número destes profissionais e fica mais claro ainda o problema. Cada vez temos menos gente querendo ser professor. As universidades não conseguem captar candidatos nesta área da mesma maneira que outras áreas captam. É só ver os números. Se a educação fosse árvore, estaria morrendo pelas raízes, de fome. Se a escola fosse uma padaria, faltariam padeiros. E mais, pouca gente desejaria fazer o curso de padeiro, mesmo querendo pães muito gostosos!

 A sociedade cobra muitas coisas. Porém, esquece de cobrar um tratamento digno aos professores. As pessoas até clamam por uma educação melhor e não lembram dos educadores. Não podemos ser hipócritas, é preciso aumentar os salários como é preciso aumentar o número de vagas para os alunos nas escolas públicas.

 É urgente dar as condições salariais ao educador para que possa ele mesmo qualificar-se. Qualificar-se no que quiser! O professor não quer nada de graça. Ele quer dignidade.

   Continuo dizendo obviedades, invisibilidades.

Temo por meus netos. Quem serão seus professores? Haverá professores? Qual a qualidade das vivências culturais dos que se candidatarão à docência?  As respostas são óbvias também, mas não quero escreve-las. Vou deixa-las doendo no meu peito de professor.




Poder e violência. Coisas distintas.