quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Ele: viajante. A moça: planeta de destino.







Ele ia ao escritório de transporte público diariamente. O escritório é no centro da cidade, onde não há mais estacionamento possível. Portanto, deixava o carro em casa e ia ao trabalho de ônibus. Coisa previsível, chata, rotineira. Pela manhã cedo, juntava-se a um pequeno grupo de pessoas que esperavam o transporte coletivo. Todas em silêncio. Olhando o horizonte a espera do surgimento do veículo ao longe. Quando isso acontecia, uma eletricidade percorria aquelas pessoas. Ficavam atentas, os corpos retesavam-se como raposas quando veem a caça. Evidentemente, o mesmo fenômeno acontecia com ele. E assim era diariamente. Não havia surpresas ou estranhamentos. Tudo simples e direto.



Em uma manhã, ele estava – como sempre – com o olhar fixado no horizonte a espera do transporte, quando a moça passou ao seu lado e, como todos, ficou a espera também.  Era bem provável que ela sempre estivera ali próxima a ele, entretanto, os sentidos dele ainda não a tinham captado até este dia. Era um milagre: ela surgiu no mundo dele naquele momento! Do inexistir ao nascer nele: um segundo! De dentro do corpo dele, através das vidraças dos olhos, viu a moça. Morena, altura mediana. Formas arredondadas. Preenchiam cada centímetro daquelas calças. Rosto de traços suaves e sereno. Como todos ali no ponto de ônibus, ela cumpria o ritual previsível de esperar o ônibus. Estava próxima dele, mas estava na infinita distância espiritual dos que se desconhecem. De dentro dele pensou: que maravilhoso enigma! Uma moça bonita e graciosa, um mundo humano inteiro a minha frente. Eu me sinto um astronauta indo a marte. Indo em busca do desconhecido. Meu corpo é a nave, minha alma o comandante. A moça é o planeta. Ah! Adoro metáforas!



Rotineiramente se encontravam no ponto de ônibus. Ele a esperava. Ela comparecia. A moça era sempre uma esperança de alguma novidade. Quem sabe ele falaria com ela? Quem sabe ela o veria hoje? Ou ainda, ele hoje poderia ouvir a voz dela?! Mas nada acontecia. Então, ele ficava na esperança de vê-la novamente e esperava o milagre (re)acontecer. O milagre dela aparecer para ele: o astronauta que queria pousar no mundo dela. Mas a moça morena, bela e sedutora, na sua rotação planetária não podia perceber o ínfimo navegante espacial: um mero fragmento quase invisível.  A aparência dele não é de chamar a atenção de ninguém, muito menos dela. Mas ela, como todo planeta, tem força gravitacional atrativa. Ele passou a volitar em sua volta, como um humilde satélite.





Viajavam juntos no ônibus. Ela sentada, ele em pé. Gostava de vê-la. Ele era uma espécie de escritor voyeur. Os olhos dela nunca cruzaram com os dele.  De dentro do corpo dele, pensava: como ela reagiria se soubesse que era uma pessoa importante na vida de outra? Como ela se sentiria se soubesse que era a esperança de alguém? Que era uma visão esperada diariamente por um desconhecido? Que a beleza dela era observada delicadamente por um cidadão tão igual aos demais cidadãos? Que ela seria descrita numa crônica? Uma crônica que ela talvez nunca lesse, e se lesse, não saberia que era escrita para ela?



A moça morena de corpo bonito diariamente cumpria seu compromisso: apresentar-se para os olhos de alguém que adorava observá-la. A timidez do observador nunca iria permitir a aproximação. Ele ficará sempre dentro do seu corpo, observando pelas janelas dos olhos a bela moça morena. Nunca ele saberá quem ela é, quem ela ama, quem é sua família. Por outro lado, ela nunca saberá que foi importante para alguém. Que embelezou as manhãs de uma pessoa tímida. Ela nunca saberá que acrescentou vida em outra vida. O moço ficou imaginando o milagre que foi tudo isso! Aconteceu sem que as pessoas percebessem.



A moça desta crônica foi um milagre para ele. Antes dela, ele ia à parada de ônibus esperar o transporte público. Depois dela, ele ia à parada para ver a mulher bonita que não sabia da existência dele. Antes dela ele viajava sozinho no ônibus até o centro da cidade. Depois que a viu, ela passou a fazer companhia para ele no ponto de ônibus e no trajeto. Sem que ela soubesse, tiveram muito tempo juntos, diariamente. Escrevo esta crônica em agradecimento a ela. Obrigado moça por fazer daquele moço um astronauta viajando para ti. É verdade que nunca ele te encontrou no final desta viagem espiritual, pois tu és o planeta marte e ele é apenas um pontinho viajando, um asteroide. Mas que importa? O que valeu mesmo foi a viagem, o sonho, a esperança e a alegria dele ver-te. Obrigado por este milagre.