terça-feira, 28 de agosto de 2018

A Filosofia na sala de aula evita o walking dead



Conceituar a Filosofia é uma tentativa milenar. O conceito de filosofia se mantém uma questão filosófica. Uma questão irrespondível. Não dá para conceituar, paralisar, o que é essencialmente movimento. Afinal, se é movimento, a parada o extingue. Parar o movimento para vê-lo é uma contradição. Assim ocorre com a filosofia. Ela não é, ela está eternamente sendo. Quando criamos um conceito para ela, estamos imediatamente dando as condições para a criação de outro. Este é o dilema que me atinge quando perguntam para mim sobre a disciplina de Filosofia nas escolas. Afinal, para responder sobre este tema, há uma natural predisposição em defini-la.



A Filosofia é um andar eterno. E ela tem dois pés. Caminha passo a passo. Quando o pé esquerdo está no chão, o direito está indo para frente em busca do mesmo: o chão que está sob o pé esquerdo. Mas, quando lá chega, o chão é outro. Muito similar, mas não é o mesmo. Na sequência, quando o pé direito toca o chão, o esquerdo já está subindo para logo descer. E quando toca o solo, já não encontra o outro pé que já está a caminho. É sempre assim. Movimento, solo, movimento. O movimento é eterno e o solo nunca é o mesmo, mas sempre similar.



Algum caminheiro apressado pode estar valorando em demasia o pé que está à frente. Seria este pé avançado o motor, a busca do novo, da novidade, do futuro. Mas, sem o pé atrás, não é possível o movimento do pé da frente. Aquele sustenta este. E se o principal é o passo, o movimento, não é possível identificar o pé atrás e o da frente. Ora um está lá, ora o outro. Depende em que momento olhamos.  Caso queiramos fixar um dos pés para melhor observa-lo, o movimento cessa. E quando cessa, já não é mais um caminhar, mas uma parada. Estaríamos observando a parada e não o movimento.



A Filosofia é o caminhar, as passadas. Ela é verbo. Digo que é verbo porque gramaticalmente ele é movimento. Apesar de um verbo ser uma palavra escrita e fixada nos dicionários, continua sendo essencialmente movimento. O verbo é feito para ser conjugado, não para ser conceituado. E mesmo quando vamos conceitua-lo, usamos verbos. Ele é, portanto, movimento sempre. Para definir o verbo usamos verbos. Para definir a filosofia, filosofamos.



Por consequência, a disciplina de filosofia nas escolas, existe para que mantenhamos os aprendentes em estado de crítica. Afinal, a Filosofia não tem serventia em sala de aula. Ela não serve para nada, nem serve á ninguém. Como ela anda sempre, não dá tempo para fazê-la serva. Por isso, ela mantém os estudantes em estado de crítica. A Filosofia não serve para fazê-los críticos. Ela os mantem nesse estado. Os mantém em movimento. Quando acreditam, descreem. Quando descreem, voltam acreditar em outras coisas. Estão engajados em um movimento, mas prontos a engajarem-se em outro. A Filosofia só aceita a fé na dignidade da pessoa humana e no seu direito universal de ser feliz. Essa fé é inabalável. É a energia que faz o passo, o movimento do filosofar. Afinal, sem fé no homem, filosofar (que é para o homem) não faz sentido. Seria um passo caro demais para lugar nenhum.



Na sala de aula, talvez o pé atrás seja o conteúdo programático. O pé à frente a reflexão crítica sobre a atualidade. E no segundo em que pensamos a atualidade, este pensar passa a ser o pé atrás para o passo seguinte. O passo seguinte buscará novamente o conteúdo histórico da filosofia, o solo para pisar e sustentar o outro pé que já está a caminho do futuro. Caso o caminheiro fixe um dos pés, ele para ou cai. Se para, não filosofa. Se cai, causa prejuízo a si e aos outros que o acompanham na sala de aula. O professor cai quando se prende a preconceitos. Mesmo os bonitos e justificáveis.



A briga entre o filosofar na escola e a obrigatoriedade dos conteúdos programáticos (história da filosofia), são também os passos, o pé ante pé do filosofar legítimo. Ao questionar o conteúdo versus o filosofar, estão os professores filosofando porque estão andando. É uma questão dialética. Na sala de aula não é possível filosofar sem a história da filosofia. Não é possível a história da filosofia sem o filosofar. Assim como não é possível que todos amem a filosofia em sala de aula. Há os que a odeiam. Basta ao professor que filosofem contra ela e já está muito bom. Neste caso, a negativa dela é a sua afirmação: filosofar para justificar o não filosofar!



O pé esquerdo prepara o andar. O pé direito à frente suporta o impacto do solo contra si. Então, é a sua vez de preparar o andar para o pé esquerdo colidir contra o solo. A Filosofia é isso, o andar crítico. Não podemos ser como o walking dead, o andarilho morto. A sala de aula é um lugar para caminhar. É o lugar perfeito para manter os aprendizes no estado de critica. Cada momento escolar é um passo. Cada capítulo do livro didático é um passo. Cada reflexão é um passo. Até lembrei-me de um antigo brocardo: até a mais longa caminhada começa com o primeiro passo. Portanto, andemos.




domingo, 19 de agosto de 2018

A democracia on line e a vontade geral





As mídias são fundamentais desin/informando a população para que esta possa posicionar-se. A des/informação e democracia fazem uma parceria indissolúvel na gestão democrática dos países. Garantem a liberdade de expressão e de opinião. No formato tradicional, geralmente, antes das eleições, os povos são espectadores, uma espécie de Big Brothers das políticas nacionais.  Porém, com o advento da cibertecnologia informativa, as coisas mudam de aspecto. Agora, interligados on line, todos tendem a se comunicar com todos o tempo todo. Todos são textos e contextos ao mesmo tempo. Podemos dizer até que recebemos informações já as emitindo: emitimos recebendo, recebemos emitindo!



Eu estava lendo Pierre Levy (A inteligência Coletiva) quando essas reflexões vieram a minha mente. Segundo ele a democracia poderá ser eletrônica. O que traz inúmeras implicações. Não precisaria haver representatividade formal/física dos eleitores (os parlamentos por exemplo). A agilidade e a presença ubíqua das pessoas no ciberespaço, faz com que elas possam cobrar eficácia e ações rápidas dos entes políticos. Então a representatividade formal off line não conseguiria atender à essas aspirações on line. Levy sugere o que ele chama de ágora virtual. Através do acesso universal às novas tecnologias de comunicação e informação, em especial a Internet, os cidadãos plugados discutiriam em tempo real as questões da polis. Sem intermediários, os indivíduos se posicionariam e seriam posicionados pelos outros cibernautas. O acúmulo de informações/decisões tomadas, este acervo virtual (nas nuvens) criado/utilizado por todos, faria parte do que Levy chama de Inteligência Coletiva. A conexão cada vez mais densa entre os indivíduos criaria a inteligência coletiva irmanada à uma democracia eletrônica. Observem que não quero explicar o pensamento do autor, mas dar vazão a minha imaginação.



Pincei nessa leitura de Levy elementos que achei interessantes. Gostei da ideia da participação de todos (pelo menos de todos os plugados) e da participação política direta (sem representação) na ágora virtual. As pessoas ligadas e discutindo produziriam boas e significativas mudanças nas sociedades. Lembrei então do meu amigo Rousseau. Ele também entendia que a vontade do povo não pode ser representada. Criticou a democracia quantitativa, uma espécie de contadora de votos. Propôs a vontade geral.



Rousseau entendia que a vontade individual do homem é egoísta. Porém, ao eliminar todos os interesses conflitantes entre os homens, restaria um interesse comum, que ele denomina vontade geral. Essa vontade tende sempre para aquilo que é bom à coletividade. A vontade geral são todos os interesses, que simultaneamente, são úteis para todos os homens. Não pode ser confundida com a “vontade de todos”, que seria a somatória de todos os interesses particulares, egoístas e conflitantes dos homens.



Minha intenção com este escrito é trazer a questão: a vontade geral (Rousseau) e a ágora virtual (Levy) são compatíveis e produzem sinergia? Entendo que sim.  A percepção atual que temos das vantagens da eterna e sempre criativa discussão on line no espaço virtual heraclítico, é o elemento que faltava ao analógico Rousseau. A tecnologia está nos dando a chance de criarmos um novo jeito de lidar com a política no mundo. Não dá para sabermos (provavelmente nunca saibamos) onde este caminho nos levará. Mas, o melhor mesmo, é saber que ainda há caminhos possíveis. Infinitos caminhos (mesmo que tecnológicos) que crescentemente garantam a crescente qualificação da liberdade e da responsabilidade das nossas escolhas políticas.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

As organizações internacionais e o Brasil






Em tempos remotos, vivíamos em cavernas. Nossos problemas eram limitados: alimentação e segurança. Nossas preocupações giravam em torno do local onde vivíamos e caçávamos. Com o tempo, os espaços da ação humana cresceram junto com a necessidade de mais alimentação. Podemos imaginar os grupos crescendo em número e em necessidades. Podemos igualmente ver pelos olhos da imaginação as populações de humanos crescendo, o surgimento das nações, do comércio, das navegações e das tecnologias. Até o ponto em que os humanos passaram a dominar todo planeta. O que era inimaginável para os moradores das cavernas, a modernidade conseguiu: o mundo se tornou um lugar pequeno, conhecível e por todos habitável. Descobriu-se, contra nossa vaidade, que a terra é pequena, modesta e gira humildemente em torno do sol.



Na mesma proporção em que dominávamos o planeta, crescia exponencialmente o problema de conseguir dominar a nós mesmos. Somos criaturas inteligentes, criativas, egoístas e muito problemáticas. Agora o problema é a convivência comunitária de todos por todo o planeta. Os países não conseguem resolver sozinhos os dilemas da nossa espécie. Na modernidade éramos cidadãos de nossos países. Agora somos cidadãos do mundo e no mundo.



A partir do século XIX começam a surgir às organizações internacionais. As tecnologias da informação permitiram o surgimento dessas organizações. Podemos afirmar que o que as limita não são as distâncias físicas, mas as distâncias entre as moralidades e as culturas.  O homem ainda é o principal obstáculo para os problemas criados por ele mesmo.



As organizações internacionais se apresentam como entes formados por um acordo concluído entre Estados, e são dotadas de personalidade jurídica própria. [1] Elas podem, em tese, circular pelos países mesmo quando em guerra. Há acordos internacionais que garantem a atuação e a segurança das pessoas a elas associadas.  Notadamente no século XX elas crescem. Não por benevolência dos governos, mas por necessidades globais reais e urgentes. Em contrapartida, o direito internacional passou a considerar estas organizações como pessoas jurídicas que possuem direitos e deveres, podendo apresentar reclamações nas cortes internacionais. Protegidas, podem agir de forma mais independente. Elas possuem como característica a associação voluntária de seus membros e, sendo autônomas, o poder se autogerirem. Como exemplo, podemos citar as que mais se destacam hoje, como a ONU, a OMC, a Otan, o FMI, o Banco Mundial, a OIT e a OCDE.



Para o exercício de suas atividades no plano internacional, as organizações internacionais possuem imunidades e privilégios em relação aos seus bens, pessoal, estabelecimentos e representantes dos Estados que se encontram acreditados junto ao Organismo Internacional. Essa situação se explica em razão da necessidade de garantir liberdade e segurança da missão desenvolvida.[2]



A diplomacia e os países são conclamados a repensar as relações humanas internacionais como algo presente e real. É fato: os humanos se relacionam pelo mundo todo. Portanto, mais que estruturas administrativas que auxiliam pessoas, as organizações internacionais forçam uma política planetária mais comunitária e solidária.



Entretanto, a força dessas organizações é relativa. Se para os países economicamente hipossuficientes, elas são importantes; contrário senso, para as nações poderosas, as organizações internacionais são frágeis e, não raro, impotentes. O mundo, no seu aspecto político, é um jogo de xadrez. Vale mais que a força bruta a estratégia e a cooperação. Se uma organização internacional é frágil como um peão no tabuleiro de Xadrez global, se amparada por outro peão, no contexto do jogo, essa peça frágil se empoderará muito. Como exemplo, podemos imaginar uma ação da organização Médico sem fronteiras num país conflagrado por guerra. Seu poder de ação é ampliado quando amparado pela ONU ou por vários organismos internacionais.



As organizações internacionais, como já enfatizamos, desfrutam de limitada ou de escassa autonomia. Se para os países débeis, as organizações internacionais tendem a representar uma garantia de independência política e uma forma de buscar o desenvolvimento econômico, para os países poderosos elas significam, na maioria das vezes, tão somente um terreno suplementar – o da diplomacia parlamentar- onde atuará o seu poder nacional; as organizações internacionais são para estes simples apêndices de sua política externa.[3]



No Brasil atual, após o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, a influência das organizações internacionais decaiu fortemente. Isso evidencia o despoder delas em determinadas situações, como já foi referido no parágrafo anterior. Um bom exemplo é a atual situação conflituosa estabelecida entre a Organização internacional do Trabalho (OIT) e o governo brasileiro (em relação à “reforma trabalhista”). De forma similar, o desconforto entre nosso governo e o Mercosul pelo mesmo motivo. Apesar do questionamento internacional em relação à fragilização dos direitos trabalhistas, não há motivo para acreditarmos que alguma mudança acontecerá em âmbito nacional. Evidentemente que a conjuntura geopolítica explica tal fenômeno brasileiro. Cabe novamente a metáfora do jogo de xadrez global. É preciso, na América latina, o empoderamento entre os “peões internacionais”.



O jornal O ESTADO DE SÃO PAULO em fevereiro deste ano comentou na página Economia & negócios[4]:



Provocados por uma denúncia da CUT, um comitê de técnicos nomeados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), sem poder deliberativo, apresentou duas críticas à reforma trabalhista do Brasil no Report of the Committee of Experts on the Application of Conventions and Recommendations, 2018.

1. O Comitê entendeu que a prevalência do negociado sobre o legislado, consagrada pela Lei 13.467/2017, é contrária ao objetivo de promover negociações coletivas livres e voluntárias, constante da Convenção 98 da OIT. Essa crítica demonstra um total desconhecimento da realidade brasileira. A nova lei reafirmou como inegociáveis 30 direitos garantidos pela Constituição e abriu a possibilidade de se negociar livremente 15 direitos, determinando que o negociado seja respeitado pela Justiça do Trabalho. Trata-se, portanto, de uma inegável valorização da negociação coletiva, como querem a citada Convenção e o artigo 7.º, XXVI da Constituição Federal do Brasil. (grifo nosso).



O site WWW.O VALOR.COM.BR escreveu[5]:



O Uruguai demonstrou preocupação com os impactos da reforma trabalhista do Brasil e pretende pressionar pela organização de uma reunião no Mercosul que debata o assunto. "Não vamos interferir na legislação interna dos países, mas queremos marcar preocupações, porque assim vai ser muito difícil competir", declarou o ministro de Relações Exteriores do Uruguai, Rodolfo Nin Novoa. "O salário dos trabalhadores não pode ser a variável de ajuste para a concorrência nos mercados", acrescentou. (...)



No Brasil a informação é dominada por grupos da mídia tradicional. Por consequência, ocorre por ideologia, a desinformação popular quanto às forças internacionais que interferem nacionalmente. Não é comum as pessoas terem consciência que as organizações internacionais podem influenciar as políticas internas. Geralmente, ou não sabem delas ou as desvalorizam. Por outro lado, com o revés político que enfrentamos, as mídias alternativas virtuais vem tratando das repercussões internacionais da prisão do ex-presidente Lula, da morte da vereadora Marielle e da intervenção militar nos morros do Rio de Janeiro, entre outros eventos que marcam a anormalidade institucional em que vivemos.  Tenho especial apreço pelo canal TV 247, mantido no YouTube[6]. Nesse sentido, acredito que é possível que as pessoas passem a entender e a reconhecer a importância do Direito Internacional Público e, em especial, das organizações internacionais.









[1] Guerra, Sidney. Curso de direito internacional público. 9ª edição. São Paulo, editora Saraiva, 2015. Página56.
[2] Idem. Página 257
[3] Seitenfus, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais. 6ª edição. Porto Alegre. Editora Livraria do Advogado, 2016. Página 53
[6] https://www.youtube.com/channel/UCRuy5PigeeBuecKnwqhM4yg

domingo, 12 de agosto de 2018

O resto é o resto. Simples assim.


                                                                                                



Imagina fortemente a situação que vou descrever.



Tu estás na rua quando és assaltado por uma fulminante amnésia. Não sabes mais quem és, nem o que fazes para sobreviver. Muito menos tua história de vida! Percebes que tuas posses reais são apenas tuas roupas e pertences pessoais.



O fato é o seguinte: quem tu és moralmente, é exatamente o que pensas e sentes neste exato momento.



Podes até conjecturar a possibilidade de teres outras posses ou outras características de personalidade anteriores, mas serão apenas conjecturas (enquanto durar a amnésia). Se o possuis o carro que está a teu lado, não tens acesso. Se tens contas em bancos, não tens nem ideia disso. No teu bolso há apenas trocados. Não tens documentos.



Portanto, és exatamente o que tu portas, pensas e sentes nesse momento. És totalmente presente. Sem passado, não podes imaginar um futuro!



Sentes fome. Vais até uma lancheira. Ficas na porta e não entras. Percebes que és incapaz de entrar sem ter dinheiro para comprar o lanche. Não podes explicar este sentimento, o porquê, pois não tens história. Olhas as pessoas inocentes comendo seus lanches de forma distraída. Fácil furtar-lhes o alimento. Entretanto, uma força interna e inexplicável, misteriosa, impede-te disso.



Percebes que, de forma automatizada, dás licença para os mais idosos passarem. Tens o cuidado instintivo de não colidir com os demais transeuntes e se o faz, pedes desculpas sem refletires. Sorris para uma criança e sentes pena de um pedinte na rua. Dás a ele teus únicos trocados. Uma moça derruba um pacote pequeno e tu junta-o do chão e o entrega num ato reflexo. De onde vêm essas ações reflexas?



Então tu sentas numa praça já cansado. Observas um cidadão lendo um jornal. As manchetes te trazem desconforto, pois falam de corrupção e violência. Entretanto, admira a vestimenta do homem que lê. As cores combinam. Usa gravata. Acha-o uma pessoa chique. Então olhas para ti mesmo. Também estás vestido de forma elegante. Sapatos impecáveis. Roupas novas. Sentes que entendes todas as manchetes do jornal, mesmo as mais complexas sobre economia. Tens opinião pronta sobre tudo o que lês. Percebes que podes opinar com coerência sobre os temas tratados. Ouve-te mentalmente criticar as mazelas sociais e a corrupção. Serias, por consequência, uma pessoa estudada e honesta? Tudo sugere que sim. As coisas que pensas e que sentes são pistas sempre atuais.



Forças a memória para te lembrares da tua identidade. Como não lembras, percebes uma grande verdade: somos exatamente o que pensamos, sentimos e portamos nesse momento.



A verdade é filosófica e fatal: tu és aquilo que portas, sentes e compreendes do mundo no exato momento em que estás agindo/reagindo nele. O ontem não existe de forma consciente quando estamos em ação. Não importa títulos ou posses.  Mesmo com a memória apagada, se és um mau caráter, assim continuarás sendo. Se és um obtuso, assim continuarás. Se fores amoroso, amarás. Se fores odiento, odiarás. Simples assim. A amnésia não pode disfarçar o que és. Ao contrário, o esquecimento salientará tua essência.



Não importa o que dizes que és. Muito menos os certificados que afirmam tuas qualidades. Quando tiveres de agir, no segundo exato da necessidade da ação, agirás conforme tua essência construída no tempo, mas sempre atualizada. Na ação tua essência será visível. As justificativas são sempre a posteriori.

A pergunta do sujeito com amnésia se mantém: quem sou? Para responder, os fatos:



Mesmo com fome, não furtaste. Na rua, procuraste não bater em ninguém. Foste gentil. Deste passagem aos mais velhos. Pediste desculpas. Sorriste para crianças. Tiveste pena das pessoas desvalidas e, mesmo com fome, doaste teus últimos trocados. Devolveste o que não te pertencias. Admiraste uma pessoa de bom gosto no vestir. Também tuas vestimentas são de bom gosto. Interpretaste bem as notícias do jornal. Fizeste juízo moral negativo em relação às imoralidades sociais. São pistas reais, materiais. Pistas evidentes.



Estas são tuas verdades. Não importa outras coisas: só os fatos. Agora podes saber quem és. Saberás melhor agora do que sabias antes da amnésia!



Tu és sujeito honesto e gentil. Amoroso com crianças e idosos. És uma pessoa sensível às desigualdades sociais. Tens bom gosto e és bem informado. Concluo isso das tuas ações. Não preciso saber tua história de vida.



Após esse exercício de imaginação, podemos concluir que nós somos apenas o que possuímos junto a nós, o que sentimos e como agimos. O resto é o resto. Simples assim.






quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Jusfilósofo Pedro






Pedro é um filósofo paupérrimo muito conhecido na cidade. Ele é um radical seguidor de Antístenes e de Diógenes (aquele que morava em um barril).  Certo dia Pedro sem cerimônias, furtou um notebook de um cidadão que almoçava em um restaurante ao ar livre. Todos presenciaram o fato.



Coisa simples: Pedro maltrapilho, alcança o aparelho e sai com ele tranquilamente. A polícia é chamada. Em minutos, o já conhecido maltrapilho e filósofo, é levado à delegacia. O delegado, um tanto condescendente, pois o acusado já é figura folclórica na cidade, pergunta o por quê dele ter feito aquilo. O delegado avisa que não haverá a comunicação formal do crime, pois a comunidade já está acostumada com suas maluquices.

         Sendo Pedro um despossuído, acredita ser poderoso. Nada tendo a perder, nada é possível contra ele. Então, assume papéis (personas) estranhos que assombram as pessoas. Vive Pedro para assombrar.

            Seu novo papel: uma pessoa desejosa de ter coisas e que, portanto, as furta.


Pedro – filósofo cínico e chato – faz sua justificativa:


Ora, afirma o andarilho, o bem jurídico (principal) em questão é o direito de ter e manter a propriedade privada. As pessoas não podem ser impedidas de terem coisas, desde que sejam lícitas. Tomar de assalto essas coisas ou impedir alguém de tê-las ( nesse momento específico ele aumenta um pouco o tom de voz), viola o direito fundamental à propriedade. Não é assim por aqui?

Na verdade, continua Pedro, eu tomei de assalto o objeto daquela pessoa, no intuito de ressaltar a injustiça de impedir alguém de ter coisas (neste caso impedir-me, pois não posso adquirir o objeto) . Ter é direito fundamental. Delegado, eu peguei furtivamente algo para ressaltar que também eu tenho direito de ter coisas. E o Estado tem a obrigação de me  proteger, proteger este meu direito! Meu direito de ter não pode ser impedido. Reconheço que errei ao furtar. Foi uma licença filosófica. 

Quero fazer uma queixa-crime jusfilosófica! Vamos esquecer meu furto para ver o caso de forma diferente. Veja que quero trabalhar, mas ninguém me contrata. Quero ter dinheiro para poder exercer meu direito constitucional à propriedade, mas ninguém me dá dinheiro. Quero ter as condições para ter coisas. Ora, por consequência lógica, alguém (ou todos nessa cidade) está me impedindo de exercer meu direito fundamental à propriedade. Então, se o Direito Penal me atinge quando eu impeço alguém de manter/ter sua propriedade, quero que de alguma forma, ele proteja meu igual direito de ter coisas! Simples assim: eu não furto se deixarem eu obter licitamente. Se é crime eu pegar coisas, também deve ser crime qualificado o impedimento de eu obtê-las de forma socialmente aceita. Acredito, delegado, que tanto eu quanto minha vítima não questionam o nosso direito fundamental de ter propriedade, nem que é absurdo alguém ser impedido de obtê-las de forma legal.



O jusfilósofo cínico termina perguntando ao delegado: Posso fazer agora meu jusboletim de ocorrência?

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

A importância do responsável durante o processo disciplinar nas escolas



Prof. Amilcar Bernardi





No aspecto jurídico, todos têm direito a ampla defesa. Todo o acusado pode/deve refutar os argumentos injustos do seu acusador. Ninguém é obrigado a calar quando é imputado a si uma infração ou crime.  Uma acusação é feita de argumentos, por consequência, o acusado irá contra-argumentar.



Contra-argumentará com paridade de armas. Esta paridade refere-se ao imperioso respeito ao princípio da isonomia. Ora, fácil perceber que, portanto, ao responsável pelo julgamento cabe a imposição ético-moral-legal de garantir a igualdade entre os que disputam um direito (ou que se defendem de uma acusação) e de garantir a isonomia entre o poder de defender-se do réu/acusado e o poder de imposição de pena do Estado. Na desigualdade não há justiça possível. Duas necessidades imperiosas são aqui elencadas: o direito à defesa e à paridade. Fica claro na redação da Constituição Federal, no seu artigo 5º, inciso LV:



Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:  LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. (grifos nossos).



Lembrando que o Código de processo civil se liga a Constituição Federal ao orientar no seu artigo 1º:



Art. 1o O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil observando-se as disposições deste Código.



Os princípios da isonomia e da obrigatoriedade da ampla defesa, sendo eles constitucionais, são pedra fundamental também nos processos administrativos. Não é possível dizer que um processo justo aconteceu sem que estivesse ancorado nos princípios citados acima. Neste sentido, não há mais controvérsia possível.



No que se refere ao ambiente escolar, o Estatuto da Criança e do Adolescente faz a seguinte admoestação no seu artigo 3º:



Art 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. (grifo nosso).



É possível fazer uma analogia entre os procedimentos escolares punitivos, que visam apurar o(s) ato(s) indisciplinado(s) do aluno, a um processo administrativo. Isso por que o adolescente estará frente a autoridade escolar (Diretor, supervisor ou professor), sendo questionado (inquisitorialmente) sobre suas ações ou omissões no ambiente escolar. Percebamos que as declarações deste adolescente são fundamentais para a formação da convicção desta autoridade. É esta convicção que vai culminar com a determinação de sanções. A partir da fala deste aluno, como consequência, poderá ser advertido, suspenso e até expulso. Portanto, convém lembrar o já citado Estatuto da Criança e do Adolescente, quando garante ao inimputável:



Art. 111. São asseguradas ao adolescente, entre outras, as seguintes garantias:

II - igualdade na relação processual, podendo confrontar-se com vítimas e testemunhas e produzir todas as provas necessárias à sua defesa;

III - defesa técnica por advogado;

VI - direito de solicitar a presença de seus pais ou responsável em qualquer fase do procedimento. (grifo nosso)



A presença dos pais ou responsáveis durante o processo administrativo é obrigatória por motivos evidentes.  São eles que podem aferir a aplicação com justeza dos direitos processuais do adolescente, e também a aplicação plena do Estatuto no seu artigo 53, ou seja, se a criança ou o adolescente está sento tratado com respeito (parágrafo II) durante os procedimentos inquisitórios. Por esse viés, o artigo 111 do ECA garante nas questões processuais envolvendo adolescentes:



Art. 111. São asseguradas ao adolescente, entre outras, as seguintes garantias:



VI - direito de solicitar a presença de seus pais ou responsável em qualquer fase do procedimento.



Outro elemento importante para se observar é o regimento escolar. É nele que está estabelecido o que é a disciplina, os objetivos da escola, a organização didática e pedagógica da instituição escolar. E mais, o regimento escolar ao definir a organização administrativa do estabelecimento de ensino, estabelecerá por consequência, as competências (e seus limites) de quem ouvirá o aluno no processo administrativo escolar. Por isso é extremamente importante conhecer este documento. Só assim os adultos envolvidos perceberão se a condução processual está dentro do previsto institucionalmente. Não menos importante, é perceber se o objetivo pedagógico estabelecido pela escola, vai se materializar na sanção e nos procedimentos processuais. Não é possível sanções diferentes dos objetivos previstos no regimento! Por exemplo: se o regimento prevê sanções que eduquem, excluir-se-á por consequência lógica, aquelas que apenas causem prejuízo sem aprendizagem alguma.



 Cabe salientar que legalmente o adolescente não tem condições para fazer estas avaliações. Cabe aos pais (ou responsáveis) ler o regimento e cobrar sua aplicação (inclusive através do judiciário).



Pelo exposto, fica clara a necessidade do acompanhamento do aluno por seu responsável, sempre que houver um procedimento administrativo/escolar que poderá ter como resultado uma sanção importante. A presença (representação quando menor de 16 anos e assistência quando maior de 16 anos e menores de 18 anos) dos pais ou responsáveis é evidente como ratifica o Código de Processo Penal:



Art. 71. O incapaz será representado ou assistido por seus pais, por tutor ou por curador, na forma da lei.



Nesse sentido é importante lembrar os artigos 3º e 4º do CC:



Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 anos



Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:

I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;



Entende-se, portanto, que cabe ao adulto perceber se o adolescente está sendo tratado com igualdade em relação aos demais adolescentes e adultos durante os procedimentos. Cabe ao responsável equalizar a desigualdade natural entre o adolescente (aluno) e o adulto (empoderado gestor do litígio escolar). A pessoa adulta é que deverá avaliar e garantir o direito do adolescente à isonomia, à ampla defesa e ao contraditório. É preciso ter especial preocupação quando os argumentos não ocorrerem entre os adolescentes envolvidos, e sim, entre a fala do adolescente (débil nessa relação) e a fala do adulto (professor ou funcionário do estabelecimento de ensino). Isso por que o que mais importa é a fala institucional. Pois é ela que vai aplicar a sanção.



Concluo que a presença dos pais ou responsáveis nos procedimentos disciplinares nas escolas, é imprescindível. A instituição que se descuidar estará seriamente sujeita, não só a cometer injustiça nas suas decisões internas, mas a ser responsabilizada por grave desrespeito aos direitos dos adolescentes.